"A elite não acha que Cabo Delgado seja uma prioridade"
13 de abril de 2021O Centro de Integridade Pública (CIP) apresentou esta segunda feira, (12.04), um relatório onde se debruça sobre a situação dos deslocados internos em Cabo Delgado, vítimas dos ataques armados na província a norte de Moçambique.
Segundo o documento, a situação dos deslocados é calamitosa, havendo casos de famílias que não recebem apoios há mais de dois meses.
"Nas novas aldeias de reassentamento falta um pouco de tudo, desde alimentação a abrigo, utensílios domésticos e vestuário", refere o relatório.
Em entrevista à DW África, o diretor do CIP, Edson Cortez, sublinha que o Governo moçambique tem se desresponsabilizado no que toca ao apoio às vítimas do conflito.
DW África: Em que pontos concretos o Governo moçambicano está a falhar na assistência aos deslocados internos?
Edson Cortez (EC): Uma das principais constatações que nós fizemos na nossa pesquisa é o facto de famílias pobres, numa das províncias mais pobres de Moçambique, ficarem responsáveis por acolher os seus familiares, que estavam a fugir de zonas de conflito, aumentando a situação de pobreza estrutural que aquela província atravessa. Muitas das famílias dos deslocados dos conflitos são provenientes dos distritos costeiros e o governo de Moçambique, neste processo de reassentamento, está a reassentá-los em distritos sem acesso ao mar. Dando-os parcelas de terrenos e uma porção de terra que os deslocados têm de desbravar para começar a fazer a agricultura.
A maior parte dos deslocados são constituídos por famílias chefiadas por mulheres e com crianças. Não têm condições para desbravar matas e não têm condições, por vezes, para reerguer casas estando, assim, em situação de vulnerabilidade em relação às famílias - que são muito menos – lideradas por homens.
E há outro aspeto, as famílias provenientes dos distritos costeiros tinham como uma das suas principais fontes de renda a pesca e, neste momento, são dadas simplesmente terra e dizem: "tentem produzir algo”. Mas elas não têm na agricultura a sua principal fonte de renda.
DW África: As falhas das autoridades devem-se à negligência ou à falta de meios?
EC: O Estado moçambicano, desde 2016, com a descoberta das dívidas ocultas, tem atravessado uma crise financeira sem precedentes. Mas as dívidas ocultas não são o ciclone Idai ou kenneth que não possamos controlar. Há pessoas em Moçambique que foram responsáveis pela contração das dívidas ocultas e estas pessoas que criaram as condições para que o Estado moçambicano deixasse de ser credível. A falta de dinheiro que temos hoje, a crise financeira que o país atravessa, é culpa dessas pessoas e têm de responder pelas suas ações. São também culpadas pela situação em que os deslocados estão.
Mesmo com uma crise financeira que o país atravessa, julgo que há prioridades. Quando não se tem muito, há que saber definir prioridades. Pura e simplesmente as elites governativas deste país não acham que o assunto Cabo Delgado seja uma prioridade em termos de gestão de deslocados. Julgam que podem passar toda a responsabilidade para as agências humanitárias das Nações Unidas, para a Cáritas, a Igreja Católica, desresponsabilizando-se a que o Estado e o Governo tenham um papel mais interventivo no sentido de resolver o assunto dos deslocados e o conflito armado em Cabo Delgado.
DW África: Constataram desigualdades entre deslocados, enquanto os de etnia maconde recebem pensões do Estado e ainda ajuda de ONG's ou associações, os das etnias kimwani ou macuas dependem unicamente das ajudas das associações e ONG's. Essas diferenças não podem acirrar ainda mais as lutas entre a população?
EC: O que nós constatamos é que muito antes da eclosão do conflito, em termos de transferências do Estado para pessoas na província de Cabo Delgado, o grupo étnico maconde tem muito mais benefícios do que os demais. E isso não é só na província de Cabo Delgado, mas a nível de todo o país. O grupo étnico maconde tem tendência a ter maiores privilégios porque é um grupo étnico pequeno e que tem vários antigos combatentes que, pelo estatuto, têm pensão vitalícia que passa de geração em geração. Isso facilita o processo de readaptação a nova vida por parte dos deslocados provenientes deste grupo.