Afonso I do Congo e o tráfico de escravos
1 de setembro de 2020Nascimento: Afonso I do Congo, cujo nome de nascimento é Mvemba a Nzinga, nasceu em 1456. Foi o successor do seu pai, João I do Congo, e governou o Reino do Congo de cerca de 1507 a cerca de 1542.
Reconhecido: pela relação de proximidade que foi capaz de criar com Portugal. Afonso I não só acolheu os viajantes portugueses, como já havia feito o seu pai, como abraçou a sua religião - o Cristianismo – e quis implementá-la no seu reino. Alguns historiadores veem isto como um passo estratégico para assegurar as boas relações com Portugal. As famosas cartas trocadas entre o Rei Afonso I do Congo e os reis de Portugal (D. Manuel I e D. João III) mostram a capacidade de negociação do Rei Afonso I, particularmente quando o tráfico de escravos se descontrolou.
O que significava a educação para Afonso I? Para o Rei Afonso I, ser conhecedor da doutrina cristã era tão importante como saber ler e escrever. Como governante, Afonso trocava constantemente cartas com a Coroa Portuguesa, sobretudo no que diz respeito à prática religiosa e a questões de administração. Ele também enviou para Portugal um dos seus filhos, Henrique Kinu a Mvemba, para estudar para ser padre. Em 1518, Henrique acabou por se tornar um dos primeiros, se não o primeiro, bispos católicos africanos.
Como é que Afonso I se envolveu no tráfico de escravos? Muitos criticam Afonso por ter participado no tráfico de escravos, uma atividade que, nessa altura, era legal. No entanto, nas sociedades africanas, os escravos eram, na sua maioria, prisioneiros de guerra e eram tratados de forma diferente do que aqueles que eram enviados para longe. Em África, os escravos continuavam a ser considerados seres humanos e, em alguns casos, viam os seus direitos e liberdade restaurados. Na altura em que pediu o apoio de Portugal na criação de um sistema administrativo e na construção de instituições religiosas no Congo, o Rei Afonso I permitiu, em troca, o comércio de escravos, sem no entanto estar consciente do impacto que a escravatura viria a ter no seu reino.
Será que Afonso pensou duas vezes sobre o tráfico de escravos? Com as novas plantações em São Tomé e Príncipe a exigir um grande número de trabalhadores, a "fome" por escravos cresceu e pouco tempo depois o comércio ficou fora de controlo. Afonso tentou controlar a situação. Numa carta endereçada ao Rei D. João III de Portugal, o Rei chamou a atenção para a forma como o tráfico de escravos estava gradualmente a despovoar o seu reino e tentou impedi-lo. "O nosso país está a ficar completamente despovoado e Vossa Alteza não deve concordar com isto", salientou o Rei Afonso I. "É nossa vontade que nestes Reinos não haja comércio de escravos", sublinhou ainda. O comércio foi impulsionado pela ganância, tanto dos comerciantes portugueses, como do povo congolês, que, como Afonso escreveu, estava "desejoso" pela chegada das mercadorias portuguesas trazidas para a região pelos comerciantes.
Na batalha de Mbanza Kongo, capital do Império do Congo, Mvemba a Nzinga, que ficou conhecido como Rei Afonso I, venceu o seu primo Mpanzu a Kitima com um exército de muito menos homens. Algo que se ficou a dever, como explica o historiador Alberto Oliveira Pinto, ao apoio da igreja católica e dos portugueses. "A explicação é bem simples. Efetivamente, os cristãos contavam por parte de Portugal com o apoio de armas de fogo. A chegada do cristianismo ao Congo não traz apenas a escrita ou o lucro comercial, traz também o manuseamento de armas de fogo e mesmo de armaduras e espadas muito mais resistentes do que aquelas que até então os ferreiros Bakongo, que já eram ferreiros bastante estilizados, trabalhavam", explica.
Pouco tempo depois, Afonso foi coroado o governante do Congo. Num curto espaço de tempo, o Rei conseguiu assegurar boas relações com os portugueses. Fosse por convicção ou por estratégia, ele tinha abraçado o cristianismo.
No entanto, e em troca do apoio de Portugal na construção de uma completa infra-estrutura administrativa e religiosa, o Rei Afonso I concordou com uma parceria comercial que dependia do comércio de escravos. Uma atividade que na altura era uma prática comum, sublinha o historiador.
"Não devemos pensar nem que Afonso I era um protetor de escravos nem que era um esclavagista. Eu acho lamentável nos dias de hoje estarmos a chegar a estas posições tão extremistas e que só contribuem para o não conhecimento. Estamos a falar do século XVI e no século XVI o escravo era uma mercadoria perfeitamente legítima", justifica Alberto Oliveira Pinto.
Conceitos de "escravatura" diferentes
Ainda assim, vale a pena notar que os escravos no Reino do Congo gozavam de certos direitos que não eram concedidos aos escravos tidos pelos portugueses. Segundo Ricardo Vita, observador angolano e crítico da História Pan-Africana, "a escravatura no reino do Congo tinha uma outra definição jurídica: o escravo não perdia o seu estatuto de ser humano, podia reaver a sua liberdade e os seus direitos momentaneamente perdidos e a prática era sobretudo vender prisioneiros de guerra”.
"Cartas de D. Afonso I do Congo atestam a sua luta contra o tráfico de pessoas praticado à maneira dos europeus", acrescenta.
Situação descontrola-se
As plantações de cana-de-açúcar em São Tomé e Príncipe exigiam uma força de trabalho permanente. A ganância dos proprietários das plantações portuguesas por escravos estava a crescer, assim como o desejo de mercadorias portuguesas entre os comerciantes congoleses. O número de jovens a ser capturados e vendidos como escravos começou, assim, a crescer. Algo que, como explica Alberto Oliveira Pinto, o Rei Afonso já não estava disposto a aceitar.
"Em 1519/1520, ele exige do Rei de Portugal, que ainda era D. Manuel I, que não haja abusos por parte dos comerciantes portugueses e dos de São Tomé, que também eram de origem portuguesa, e pressiona o Rei de Portugal a emitir um alvará, que proíbe o comércio no Congo por parte de navios portugueses que não sejam do Estado", recorda.
No entanto, o Rei Afonso sofreu um revés quando D. Manuel morreu em 1521. Numa agora famosa carta, escrita cinco anos mais tarde, D. Afonso denunciou o despovoamento do seu país devido ao comércio de escravos e expressou o seu desejo de pôr fim a esta prática. O Rei Afonso I morreu por volta de 1542, deixando o seu filho Pedro como seu sucessor.
O parecer científico sobre este artigo foi dado pelos historiadores Lily Mafela, professor Doulaye Konaté e professor Christopher Ogbogbo. O projeto "Raízes Africanas" é financiado pela Fundação Gerda Henkel.
Nota: uma versão anterior deste artigo mencionou que a carta de 1526 era endereçada ao Rei D. Manuel I, quando na realidade tratava-se do Rei D. João III. Pedimos desculpas pelo lapso.