"Ainda hoje tenho pesadelos com este horror"
12 de maio de 2012No dia 27 de maio de 1977 populares manifestaram-se em Luanda a favor de Nito Alves, na altura ministro da Administração Interna e membro do Comité Central do partido no governo MPLA. As manifestações das massas foram na altura classificadas pelo Presidente de Angola, Agostinho Neto, como uma tentativa de golpe de estado.
Nos dias e meses a seguir ao 27 de maio de 1977, os apoiantes de Nito Alves, o chamados "fraccionistas", são expulsos do MPLA. Dezenas de milhares são torturados e assassinados sem julgamento.
Falamos com a historiadora portuguesa Dalila Cabrita Mateus sobre este episódio da história angolana. Ela publicou com o seu marido Álvaro Mateus o livro “Purga em Angola”, lançado em 2007 (agora na sexta edição). Neste Contraste apresentamos a primeira parte da entrevista da pesquisadora à DW.
DW África: Qual foi o episódio que mais a marcou durante as pesquisas sobre os acontecimentos de maio de 1977?
Dalila Cabrita Mateus: As entrevistas a antigos presos políticos barbaramente torturados marcaram-me particularmente. Para a minha tese de doutoramento, já tinha ouvido presos angolanos, moçambicanos e guineenses, que me contaram as torturas infligidas pela PIDE. Depois, para o livro sobre o 27 de maio, ouvi presos angolanos narrar o que sofreram nas cadeias. Ainda hoje sonho, tenho pesadelos, com este horror.
Um dos últimos presos que ouvi, depois de narrar o que lhe tinham feito, encostou-se a uma porta e da sua boca saiu um suspiro enorme. Tinha desabafado. Disse-lhe: "O senhor conseguiu, enfim, desabafar." Mas eu, que ando há anos a ouvir o sofrimento de todos os presos políticos, com quem desabafo?
A gravação e a transcrição de todas estas entrevistas estão hoje depositadas na Torre do Tombo.
DW África: Consegue resumir num minuto o que aconteceu de facto no 27 de maio de 1977?
DM: Alguns pequenos grupos armados tomaram cadeias, com o propósito de libertar gente sua que estava presa. Por exemplo o Batalhão Feminino tomou a cadeia de São Paulo. Estavam presos dezenas de elementos do grupo de Nito Alves e José Van Dunem. Eles próprios, como se comprova pela gravação escutada das emissões da rádio em Angola e por alguns testemunhos, estavam detidos.
Um pequeno grupo tomou a Rádio, com o objectivo de apelar a uma manifestação em frente ao Palácio. Dos musseques [os bairros pobres de Luanda] afluíram centenas e centenas de manifestantes, que começaram por se dirigir ao Palácio. Tendo sido recebidos a tiro, começaram a concentrar-se em frente à Rádio.
Não há, pois, qualquer golpe de Estado. O que há é uma manifestação e algumas acções militares para libertar presos e tomar a rádio. "Insurreição desarmada de massas", lhe chamou o historiador inglês David Birmingham.
O objectivo era provocar uma alteração radical da política, seguida de uma insurreição. Mas o meio era uma simples manifestação, e isso prova-se hoje através das imagens, na altura obtidas pela própria Televisão Popular de Angola.
DW África: Tomaram a Cadeia de São Paulo, a sede da polícia política DISA e a Rádio Nacional, mas não o Palácio Presidencial. Porquê uma estratégia tão mal concebida?
DM: Tomaram de facto a Cadeia de S. Paulo, mas nunca tomaram a sede da DISA. E não queriam tomar o Palácio Presidencial. "Plano louco e mal concebido", diz o historiador inglês Birmingham.
Mas não queriam realizar de facto um golpe de Estado. Confiavam na superioridade de forças que tinham, entre os militares da 9ª Brigada e na população. E nunca terão imaginado que os cubanos fossem intervir com tanques para dispersar a manifestação e tomar o quartel da 9ª Brigada.
DW África: O levantamento dos apoiantes de Nito Alves e José Van Dúnem pode ser considerado um golpe de Estado?
DM: Num golpe de Estado ou numa insurreição, toda a gente o sabe que se tomam locais, com militares e civis armados; tomam-se a Presidência e os ministérios, a polícia política, os correios e as telecomunicações, os quartéis, o aeroporto, entre outros.
Se não havia um plano para tomar nada disso e a grande acção é uma manifestação de gente desarmada, como é que se pode falar dum golpe de Estado?
DW África: Qual foi o papel dos soldados cubanos na repressão do "golpe"?
DM: Os cubanos foram mandados intervir por Fidel Castro, depois de este ter falado com Agostinho Neto. Fortemente armados e utilizando tanques, acompanharam a polícia política DISA e ocuparam a rádio, dispersaram os manifestantes e, depois, tomaram o quartel da 9ª Brigada. Quem o declara é o general cubano Rafael Moracen. Depois, os cubanos ainda colaboraram nos interrogatórios de presos.
DW África: O que aconteceu com os detidos do movimento do 27 de maio?
DM: Os participantes no 27 de Maio foram presos e torturados. Muitos foram sumariamente fuzilados, sem qualquer tipo de julgamento. Outros foram mandados para campos de concentração e ali morreram. Os que podem ser considerados os mais felizes, são aqueles que acabam ser libertados ao fim de dois anos de tantas torturas e de terem passado tão mal.
Mas nem só os participantes foram presos. Foi também detida muita gente que pouco tinha a ver com os acontecimentos. Uns, porque possuíam bens que eram cobiçados. Outros, porque eram amigos ou familiares dos chamados "fraccionistas". Ainda outros, porque tinham criticado ou manifestado o seu descontentamento com a forma como as coisas corriam. Outros porque tinham tido azar e estavam na rua. Finalmente outros porque eram intelectuais ou estudantes, grupos sociais particularmente visados.
DW África: Qual foi o destino de Nito Alves e José Van Dúnem?
DM: Foram presos e sumariamente fuzilados, sem que tivessem sido acusados e julgados.
DW África: Como funcionava a Comissão das Lágrimas?
DM: A Comissão, a que o povo chamou das Lágrimas, foi criada pela Direcção do MPLA, com o objectivo de selecionar depoimentos sobretudo de intelectuais presos no 27 de Maio. E por isso era constituída por elementos considerados "intelectuais". Essa Comissão interrogava, provocava e decidia se o preso devia ou não ser entregue aos militares e às polícias; isto é, se ia ou não para a tortura.
DW África: Qual foi o papel dos escritores angolanos Pepetela e Luandino Vieira nessa Comissão das Lágrimas?
DM: De facto, na Comissão estiveram Pepetela e Luandino Vieira, mas também Manuel Rui Monteiro, Henrique Abranches, Costa Andrade e muitos outros. Aos presos que ouvimos e que passaram por aquela Comissão ouvimos referências às perguntas provocatórias de Pepetela e de Costa Andrade.
DW África: Até que ponto foi usada a tortura?
DM: Todos os presos, sem excepção, foram barbaramente torturados. Não foram só os presos que ouvimos que se referiram às torturas. A própria Amnistia Internacional, num documento de Dezembro de 1981 sobre os acontecimentos, faz alusão às muitas torturas usadas.
Espancamentos com martelos e barras de ferro, chicotadas, queimaduras com cigarros, choques eléctricos execuções simuladas, e ainda algumas originalidades tradicionais, tudo isso foi usado para torturar os presos.
DW África: Quantas pessoas perderam a vida no total?
DM: Há cálculos diversos. A Fundação 27 de Maio, formada por antigos presos de 27 de Maio, fala de 80.000 mortos. O jornal Folha 8 de 60.000. Adolfo Maria, militante da chamada "Revolta Activa" e o juiz angolano José Neves, que participou numa Comissão de Inquérito aos acontecimentos, apontam para 30.000 mortes.
A Amnistia Internacional avançou com uma estimativa que vai de 20.000 a 40.000. Um elemento da polícia política DISA, entrevistado por mim, dizia terem sido apenas 15.000 mortos. Eu e meu marido, no livro que escrevemos, ficamos pelo número mais vezes referido. Seriam, pois, uns 30.000.
DW África: Quem eram os responsáveis pela violência?
DM: Autores materiais houve muitos, entre militares e elementos da DISA, a polícia política. Mas a própria DISA era dirigida por uma Comissão Nacional de Segurança, cujos responsáveis máximos eram Agostinho Neto, Lúcio Lara, Iko Carreira, Rodrigues João Lopes (Ludy) e Henrique Santos (Onambwé).
Os mandantes são, pois, facilmente identificáveis. Além de Agostinho Neto (ele mesmo ou através do seu chefe de gabinete), Iko Carreira, Lúcio Lara, João Luís Neto (Xietu) e Henrique Santos (Onambwé). Mas também tiveram os seus conselheiros, designadamente alguns embaixadores que não tiveram tento com a língua.
DW África: Então está a dizer que o principal responsável é o primeiro presidente da República de Angola, Agostinho Neto?
DM: É evidente. Nós afirmamos que as principais responsabilidades recaem por inteiro sobre Agostinho Neto, o presidente de Angola.
Aqui cabe a lembrar o que pensaria ou faria Nelson Mandela, se estivesse na mesma situação. Referindo-se à governação de Creonte, na Antígona de Sófocles, sua peça preferida, Nelson Mandela dizia que "não se pode julgar um homem completamente, o seu carácter, os seus princípios, o seu sentido de justiça, até ter mostrado o que vale no governo do seu povo".
Ora, Neto não se preocupou com o apuramento da verdade. É este o grande problema. Dispensou os tribunais, declarando publicamente que não iria perder tempo com julgamentos. Está na televisão, qualquer pessoa pode ver isto. Admitiu que fizessem justiça sumária pelas próprias mãos.
Ora, se compararmos de novo com Nelson Mandela: o ANC [African National Congress, o movimento de libertação da África do Sul] tinha 36 grupos e fracções. Mandela queria que vissem uma grande tenda que podia acolher muitos e variados pontos de vista. E sabia que não se podiam cortar os laços com a juventude, por muito excessiva e simplista que fosse, pois não se constrói o futuro sem aqueles que o irão viver.
Imaginemos, então, por momentos, que, em vez de Mandela, a África do Sul teria tido por presidente Agostinho Neto. Em que banho de sangue não se teria mergulhado?