Ativista é ameaçado por criticar "herói" do regime colonial
23 de fevereiro de 2021A escalada da intolerância racial contra o dirigente da SOS Racismo em Portugal é nítida há alguns dias nas redes sociais. O ativista Mamadou Ba tornou-se alvo de uma campanha de ódio depois de condenar a visibilidade e as honras de Estado concedidas ao tenente-coronel Marcelino da Mata - cujo funeral, na segunda-feira (15.02), contou com a presença do Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.
Considerado o oficial mais condecorado do Exército português, o militar de origem guineense é reconhecido por uns pela sua bravura e criticado por outros pelos crimes cometidos no país onde nasceu, durante a guerra colonial. Várias personalidades e instituições condenaram os louvores a Marcelino da Mata, falecido no passado dia 11 de fevereiro.
Numa nota de inquietação distribuída à imprensa, a SOS Racismo repudia a onda de perseguição e ameaças ao seu dirigente. Em declarações à DW África, José Falcão, que também é integrante da ONG, lamenta o fato de Portugal nunca ter discutido a guerra colonial, a escravatura nem o racismo que daí advém até aos dias de hoje.
"Um genocida consegue ter condecorações depois do 25 de abril porque antes era normal... E, depois, ironia do destino, através do seu enterro é desenterrada toda uma raiva dos racistas, dos xenófobos, dos saudosos do passado e da guerra colonial, de Portugal a Timor, que está à vista. Faz-se assim as coisas mais parvas que é possível fazer, com o discurso mais cretino que é possível ter sobre esta matéria", revolta-se Falcão.
"Vamos ver como acaba"
Esta segunda-feira, num encontro virtual com a imprensa estrangeira em Portugal, as falhas da política de imigração na Europa foram um dos temas abordados pelo parlamentar André Ventura, um dos representantes mais reconhecidos da extrema direita portuguesa na atualidade. O líder do partido CHEGA aproveitou a oportunidade para criticar o posicionamento de Mamadou Ba contra a discriminação racial e em relação a Marcelino da Mata.
Ventura reconheceu que tem "muito conflito" com o ativista. Para o deputado, Mamadou Ba contribui para o que está a acontecer e isso está a agravar o ambiente e a tensão racial em Portugal. "Vamos ver como é que acaba, mas eu acho que nós temos que ser muito firmes na defesa daquilo que é a nossa identidade, daquilo que é a nossa tradição histórica e também na aceitação daquilo que é o nosso passado", argumenta.
O líder CHEGA decidiu avançar com uma queixa contra Mamadou Ba, acusando o ativista de "ofender gravemente a memória da pessoa falecida" após as publicações feitas nas redes sociais sobre Marcelino da Mata.
No entanto, a revolta da direita portuguesa contra Ba não ficou restrita a apenas um partido. Na semana passada, os conservadores do CDS-Partido Popular exigiram a "saída imediata" de Ba do grupo de trabalho para a Prevenção e o Combate ao Racismo e à Discriminação, criado pelo Governo em janeiro. O partido considera que o ativista português de origem senegalesa insultou o oficial do Exército português.
"Delito de opinião"
Mamadou Ba mostra-se indignado com a onda de ataques, incluindo várias petições solicitando a sua expulsão do país. O ativista disse à DW África que a fulanização da política é um estratagema de distração para não se discutir o que realmente importa.
"Aqui, eu não tenho que culpar o dirigente do CHEGA. A minha expetativa é de ver como é que o sistema jurídico vai reagir a isso. Se a nossa ordem jurídica der provimento a uma queixa por delito de opinião, quer dizer que toda a conversa em torno do politicamente correto está ferida de morte", opina.
Para o ativista, a palavra deportação é de má memória para a Europa, e o que está em jogo é se se deve, nos dias de hoje, resgatar a memória de Marcelino da Mata.
"E, a propósito do resgate dessa memória sinistra, que não deve orgulhar ninguém, atacar aquilo que é essencial para a solidez democrática do país. É saber se o país está preparado ou não para olhar para toda a sua comunidade, independentemente da sua cor da pele, e sentir respeito por esse comunidade", questiona.
Mamadou Ba critica a retórica oportunista do CDS-PP, que estaria, segundo a sua opinião, a usar a memória de um antigo soldado do exército colonial para disputar espaço político a um novo partido da extrema direita. "O que não sabem é que a africanização da luta armada foi um crime", afirma, lembrando a memória daqueles que combateram o colonialismo.
A legalidade do CHEGA
Ana Gomes, candidata à Presidência nas últimas eleições, requereu à Procuradoria-Geral da República (PGR) a abertura de um inquérito para reapreciar e apurar a legalidade do partido CHEGA.
A ex-diplomata considera, entre outros fatos, que o líder do partido, André Ventura, "tem vindo a fazer ameaças racistas e instigadoras ao ódio e à violência contra jornalistas e minorias, em especial contra as comunidades cigana e afrodescendente".
Segundo Gomes, entre as pessoas visadas pertencentes a minorias estão Mamadou Ba e a deputada Joacine Katar Moreira - ambos de origem africana, ameaçados de expulsão de Portugal. "Portugal tem uma trágica história de expulsão de portugueses no tempo da Inquisição que, obviamente, não pode ignorar para, de novo, aceitar esse discurso".
Ana Gomes considera que o partido de André Ventura tem um projeto de destruição da Constituição como fundamento da democracia em Portugal. "A Constituição portuguesa tem artigos muitos claros, de resto, inspirados na Constituição e na lei alemã, no sentido de não serem permitidas organizações racistas e fascistas. Claramente, há toda uma prática racista que tem sido desenvolvida pelos seus responsáveis, que não pode ser pura e simplesmente ignorada pelas autoridades portuguesas, sejam judiciais sejam políticas", argumenta
A ex-eurodeputada acrescenta que Portugal tem leis claras de criminalização de práticas e discursos racistas e tais leis devem ser aplicada por quem de direito. No documento endereçado à Procuradoria-Geral da República, Ana Gomes diz que cabe ao Ministério Público requerer a extinção de partidos políticos qualificados como armados, militares, militarizados, paramilitares e caracterizados como organizações racistas ou que defendam a ideologia fascista.
Gomes fundamenta que "o partido CHEGA, em linha com a atuação política dos seus dirigentes, defende o confinamento de grupo étnicos, atiçando ódios, xenofobia e discriminação racista", além de fazer o "discurso de desumanizador dos imigrantes".