Bissau: Julgamento ensombrado por "ordem superior"
3 de junho de 2024Dois anos e meio depois, começa a ser julgado o caso da alegada tentativa de golpe de Estado. A 1 de fevereiro de 2022, homens armados atacaram o Palácio do Governo onde decorria uma reunião do Conselho de Ministros presidida pelo chefe de Estado, Umaro Sissoco Embaló. 11 pessoas morreram.
Entre os 37 arguidos está o ex-chefe da Armada guineense, José Américo Bubo Na Tchuto. O vice-almirante é apontado como o líder da suposta intentona.
Roberto Indeque, um dos advogados dos detidos, diz que o caso já começou mal, antes mesmo do julgamento.
"O Ministério Público, no âmbito do inquérito que realizou sobre o caso 1 de fevereiro, chegou à conclusão de que foi presa muita gente cuja implicação nesse caso não se vislumbra. O Ministério Público emitiu um mandado de soltura para essas pessoas que se julga não terem qualquer indicação [de envolvimento], mas nenhuma delas foi libertada", disse à DW.
Caso Papa Fanhe
Um dos nomes que constava na lista de pessoas que deveriam ser libertadas é o do major Papa Fanhe, de 37 anos de idade, que morreu no hospital militar, na semana passada. A morte ensombra o início do julgamento.
Roberto Indeque admite apresentar uma queixa-crime contra o Estado guineense pela detenção ilegal durante mais de dois anos, torturas e maus-tratos a que Papa Fanhe terá sido submetido até morrer, sem poder se defender em tribunal. "Além de não ser acusado, o malogrado tem também um mandado de soltura e alguém recusou cumprir", indica Indeque.
O caso Papa Fanhe está a comover a sociedade guineense, com partilhas de fotos nas redes sociais. Os principais partidos políticos guineenses já se insurgiram em comunicados a lamentar a morte e a exigir que seja feita justiça.
O Partido da Renovação Social (PRS), terceira força política do país, juntou-se à Liga Guineense dos Direitos Humanos e a outras organizações da sociedade civil para exigir uma autópsia ao corpo do malogrado, antes do funeral. A DW apurou junto de fontes familiares que o advogado de defesa entrou com um processo para que se faça a autópsia ao corpo.
"Ordem superior"
Mas quem teria dado ordens para não cumprir a decisão judicial?
O advogado de defesa Roberto Indeque explica que, quando recebeu o mandado de soltura, fez "todas as diligências necessárias no sentido de colocá-lo em liberdade". Mas Indeque diz que esbarrou na justificação de que "ordem superior" teria proibido a soltura.
"Eu não conheço a tal 'ordem superior' para falar com ela", atira.
Agora, para o julgamento dos restantes detidos, o advogado de defesa deixa um aviso ao Tribunal Militar, de que vai aproveitar os momentos iniciais da sessão de julgamento, a decorrer na Base Aérea de Bissau, para exigir o cumprimento dos mandados de soltura emitidos a favor de alguns detidos.
"Se isso não acontecer, eu, enquanto advogado cujo constituinte tem mandado de soltura, vou abandonar a sala. Não vou assistir ao julgamento. Porque, quando é para prender, respeitam a ordem do tribunal, mas quando o mesmo tribunal ordena a soltura, se recusam a cumprir. Então, estamos em que país?"
É um país onde começa um julgamento sem que tenha sido feita uma investigação apurada ou sem que a acusação seja conhecida, diz o jurista Fodé Mané.
Será um julgamento isento?
Mané diz que este será um julgamento atípico: "A acusação que temos foi feita pelo Ministério Público em 2022, num caso que devia ter sido julgado pelo Tribunal Regional de Bissau. Isso não aconteceu, porque, a partir de determinado momento, o tribunal achou-se incompetente e o caso foi remetido para o Tribunal Militar", lembrou em declarações à DW.
De 2022 para cá, ainda não se esclareceu a questão sobre que tribunal tem competência para investigação, continua o jurista guineense, que disse ter ficado surpreendido quando "ouvimos pela comunicação social a marcação do julgamento para dia 4 de junho".
É por isso que Fode Mané antevê um julgamento que não trará a verdade, porque se saltou etapas: "O julgamento não é só confirmar o desejo de um acusador. Implica uma investigação séria. Dar todas as garantias aos arguidos e ter uma defesa justa", comenta.
"Exige ainda alguém numa posição de equidistância, para ser independente e tomar decisões de acordo com a lei e de acordo com aquilo que a sua consciência diz sobre a interpretação da lei. Mas essas condições não estão garantidas."
Em 26 de fevereiro último, o coordenador nacional do Movimento para a Alternância Democrática (MADEM-G15) disse aos jornalistas que foi acusado pelo Presidente, Umaro Sissoco Embaló, de ser o mentor da tentativa de golpe de Estado de 1 de fevereiro.