Cabo Delgado: Combates impossibilitam investigação a abusos
24 de setembro de 2020O presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH) de Moçambique, Luís Bitone, defende a criação de corredores que permitam o acesso de investigadores às zonas de conflito no norte do país. Entretanto, admite que, neste momento, é impossível investigar as denúncias no terreno devido à falta de condições de segurança. "É uma zona que não é fácil aceder. Neste momento, não há condições para levarmos a cabo investigações mais aprofundadas", afirma em entrevista à DW África.
Sobre os vídeos que estão a circular nas redes sociais com alegadas atrocidades cometidas no norte do país, Luís Bitone diz que estes materiais são "essenciais para uma futura investigação", mas "não são provas em si", pois "estamos numa era de desinformação". "Temos situações, por exemplo, de fardas das Forças de Defesa e Segurança [FDS] que são visadas no processo", disse.
Luís Bitone sublinha que, apesar das dificuldades, as autoridades moçambicanas não precisam de ajuda externa para conduzir investigações independentes. Na semana passada, a comissária europeia responsável pelas Parcerias Internacionais, Jutta Urpilainen, pediu a Moçambique uma investigação "transparente e efetiva", ao descrever como "extremamente chocante" o recente relatório da Amnistia Internacional (AI) que atribui às FDS responsabilidade por algumas violações de direitos humanos naquela província.
O presidente da CNDH descarta a criação de uma comissão independente, como tem sido defendido por alguns analistas e membros da sociedade civil moçambicana, e sustenta que a Comissão Nacional é que tem de investigar os responsáveis pelas atrocidades. "Pedir apoio significa mostrar incapacidade, mostrar que não estamos a conseguir investigar ou que estamos proibidos de fazê-lo", diz.
DW África: A Comissão Nacional de Direitos Humanos apoia a criação de uma comissão independente para investigar as violações em Cabo Delgado?
Luís Bitone (LB): O que defendemos como Comissão de Direitos Humanos é o envio para o terreno de comissões ou organismos independentes de investigação. Nós não estamos a defender a criação de uma nova comissão, até porque nós, ao nível do país, temos instituições independentes de investigação para esse tipo de questões de direitos humanos. A Comissão Nacional de Direitos Humanos é um organismo independente criado por lei para fazer este tipo de investigação e acompanhar as situações de direitos humanos. Temos também o Provedor de Justiça de Moçambique, que é um organismo independente com a missão de garantir os direitos dos cidadãos quanto à atuação da administração pública. E temos ainda a própria Procuradoria-Geral da República [PGR], que também é guiada pelos princípios de independência e equidistância. Portanto, nós não estamos a defender a criação de novas comissões, mas a criação de corredores que permitam que estas instituições independentes de investigação possam fazer o seu trabalho no terreno.
DW África: Como é que esses corredores podem ser estabelecidos e como garantir o acesso seguro dos investigadores a estas zonas?
LB: Este é que é o desafio, porque estamos a falar de zonas onde a administração civil já não está a funcionar, como Mocímboa da Praia e Macomia. Portanto, o apelo é para que, assim que tenhamos condições básicas para este trabalho ser feito, que seja feito imediatamente. Mas neste momento sabemos da dificuldade que existe para garantir a paz e a tranquilidade naquelas zonas. É uma zona que não é fácil aceder. O nosso apelo é que, logo que as condições forem criadas para o exercício dos mandatos das autoridades civis, sejamos imediatamente informados para estarmos no local e fazermos a nossa investigação independente.
DW África: Dadas essas dificuldades, será necessária ajuda internacional para que Moçambique consiga conduzir as investigações no terreno?
LB: Neste momento, não estamos a pensar nisto, porque nós não fomos proibidos de investigar. Dentro do nosso mandato, deslocamo-nos aos locais onde é possível fazer esta investigação. Só não estamos a conseguir lá onde o conflito está ocorrer. Pedir apoio significa mostrar incapacidade, mostrar que não estamos a conseguir investigar e / ou que há algum tipo de proibição. Neste momento, ninguém proibiu que nós exerçamos o nosso mandato. Penso que uma comissão internacional teria a mesma dificuldade que nós temos, que é aceder aos locais de conflito. Neste momento, não há condições para levarmos a cabo investigações mais aprofundadas. Portanto, não é oportuno pedir um apoio internacional.
As instituições nacionais, como a Comissão [Nacional de Direitos Humanos], a PGR, o Provedor de Justiça e outros têm dificuldade de aceder aos locais, não porque alguém está a proibir, mas por questões de segurança do nosso pessoal e da integridade dos nossos comissários. Os locais são de intensos combates e situações militares muito fortes, que não permitem que as autoridades civis façam o seu trabalho normalmente. Toda a autoridade civil saiu daquela zona. Estamos a falar da Procuradoria, dos tribunais, dos serviços de saúde e de educação. Portanto, as zonas estão sob a ordem das autoridades militares, apenas. Neste momento, as autoridades civis estão nos distritos vizinhos à espera que a situação se normalize.
DW África: A Comissão Nacional de Direitos Humanos já está investigar as violações que estão a ocorrer em Cabo Delgado por outros meios ou, até ao momento, não foi possível devido às condições de segurança?
LB: Neste momento, estamos a colher [elementos] longe do teatro, porque, em finais de julho, o nosso propósito era ver os lugares onde os deslocados estão em Cabo Delgado, Nampula e Niassa. A segunda questão é poder explorar algumas denúncias e vídeos que nós temos sobre a atuação tanto dos insurgentes como das Forças de Defesa e Segurança e confrontar este material com a realidade. Mas não foi possível entrar nas zonas onde estes vídeos eram supostamente feitos. Isto significa que, neste momento, estamos a colher informações fora de onde os acontecimentos ocorreram à espera que a oportunidade venha para podermos aceder aos locais de onde as suspeitas saem. Já começámos a investigar alguns processos como, por exemplo, o desaparecimento de um jornalista em junho e já começámos a falar com as autoridades judiciais e a Procuradoria. Há um processo aberto neste sentido, mas será muito difícil chegar a conclusões neste momento, porque é preciso ir ao local, inquirir testemunhas e recolher material para podermos chegar às nossas conclusões.
DW África: Entretanto, não há um fim à vista para o conflito. De facto, não é possível prever quando as autoridades civis poderão exercer o seu trabalho.
LB: Não é possível, porque é um conflito e conflito não tem datas. Portanto, não há como saber se será no próximo mês ou daqui a dois meses. Estamos a aguardar uma oportunidade, porque estamos interessados no que está a acontecer. Uma coisa são vídeos que circulam com suspeição, mas outra coisa é saber exatamente quem são os responsáveis e se é oportunismo ou propaganda. Mas, para nós, como Comissão, tudo o que circula são elementos essenciais para uma futura investigação. Não são provas em si, porque estamos numa era de desinformação. Então, não podemos fazer conclusões precipitadas.
DW África: Sobre os vídeos a circular nas redes sociais, a Comissão ainda não alcançou nenhuma conclusão?
LB: É difícil chegar a uma conclusão. Já recebemos vários vídeos ao nível da comissão, dos órgãos de informação e das redes sociais, mas são vídeos muito tendenciosos. Cada parte acusa a outra sobre atrocidades. Nós estamos a falar de uma era de desinformação em que alguns vídeos podem ser montados. De qualquer maneira, os vídeos para nós são muito importantes, porque são elementos cruciais para começarmos a nossa investigação. Temos situações, por exemplo, de fardas das FDS que são visadas no processo. Mas, no passado, já recebemos a situação de insurgentes a andar nos carros das FDS, utilizando vários sinais das forças de segurança. Portanto, os vídeos em si não são suficientes, mas são pontos de partida para uma investigação futura.