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Maputo "deve impor-se" a forças estrangeiras em Cabo Delgado

3 de agosto de 2021

O Governo moçambicano está a desvalorizar-se na gestão da crise em Cabo Delgado, diz especialista em relações internacionais. Segundo José Gama, o Ruanda opera de forma autónoma e Maputo não está na linha da frente.

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Foto: Simon Wohlfahrt/AFP

Alguns dos factos recentes que levam José Gama a estas conclusões são a ida do Governo de Harare a Kigali para trocar informações sobre Cabo Delgado, ignorando Maputo bem debaixo do seu nariz, e o informe doméstico do Ruanda sobre as suas operações em Cabo Delgado, enquanto o Governo moçambicano insiste em se manter no habitual silêncio sobre os seus assuntos.

Em entrevista à DW África, o jornalista angolano fala mesmo em "atuação autónoma" das tropas ruandesas no norte de Moçambique e afirma que Kigali "tem um objetivo concreto neste conflito". Por isso, recomenda mais e melhor coordenação entre Moçambique e os atores da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC).

DW África: Os eventos refletem descoordenação nas operações ou trata-se de desrespeito ao Governo e soberania de Moçambique?

José Gama (JG): Eu diria também que é falta de cultura por parte de Moçambique de fazer a prestação de contas ao povo. Até aqui, o que se verificou é que as pessoas, para tomarem conhecimento do que se está a passar em Cabo Delgado neste momento, tiveram de recorrer ao Ruanda. Concretamente as televisões de Moçambique, o balanço dos primeiros ataques que as forças do Ruanda fizeram, foi baseado no que a televisão do Ruanda passou.

José Gama, angolanischer Journalist und Spezialist in Internationale Beziehungen
José Gama: "Governo da FRELIMO é que deveria se impor"Foto: Privat

DW África: Isso é revelador de uma falta de coordenação entre os governos? Porque é a cultura das autoridades moçambicanas não prestarem contas, o que não parece ser prática de Kigali. Daí provavelmente ter havido a necessidade de uma coordenação entre eles sobre como gerir a comunicação...

JG: Sim, por parte de Kigali, que tem um objetivo concreto neste conflito, que é a sua projeção internacional ou - pode-se também dizer - regional. Então, há necessidade de fazer uma prestação de contas para mostrar que, de facto, o seu Exército está a fazer algum trabalho em Moçambique. Kigali mandou homens [para Cabo Delgado] e são pessoas que podem morrer a qualquer momento, e há necessidade mesmo também de esclarecer essas famílias sobre o que essas pessoas estão a fazer, caso contrário as famílias ficam também revoltadas. Kigali sabe que a sua presença em Moçambique, a forma como entrou, não foi muito bem-vinda. Então, procura mostrar que é transparente, que tem uma cultura de prestar contas. Daí que se tenha feito aquela conferência quase inédita. Por enquanto também estamos a ver os jornais de Kigali a prestarem alguma atenção a Cabo Delgado, mas sempre numa perspetiva de propaganda, de enaltecer aquilo que estão a fazer no país.

DW África: Nem que para isso o Governo de Kigali tenha de desvalorizar o Governo da FRELIMO…

JG: Eu não creio que o Governo de Kigali esteja necessariamente a desvalorizar o Governo da FRELIMO. Eu diria o contrário: é o próprio Governo da FRELIMO a desvalorizar-se, porque o Governo da FRELIMO é que deveria se impor. Houve em maio a reunião do Comité Central da FRELIMO, e o Presidente Filipe Nyusi dizia que seriam as forças de Moçambique a estar na linha da frente. Mas quando Kigali faz esta conferência de imprensa e Moçambique, na pessoa do ministro [da Defesa] Jaime Neto, revela que não tem as informações que Kigali está a passar, denota que Moçambique não está na linha da frente. Nota-se que as forças do Ruanda estão a operar de forma autónoma. Portanto, era necessário que as autoridades moçambicanas pudessem se impor mais, porque isso também acaba por mover algum desrespeito diante do povo moçambicano. Não é que as pessoas estejam contra a presença das forças armadas do Ruanda, elas são bem-vindas. O que as pessoas estão a pedir é alguma transparência nesse conflito e também algum respeito pela soberania moçambicana.

Kigali, Ruanda | Soldaten aus Ruanda auf dem Weg nach Mozambique
Soldados do Ruanda chegaram a Cabo Delgado a 10 de julhoFoto: Simon Wohlfahrt/AFP

DW África: A ministra da Defesa do Zimbabué, Oppah Muchinguri, foi ao Ruanda no âmbito da cooperação bilateral, mas também aproveitou para trocar informações sobre o que está a acontecer em Moçambique. O legítimo e acertado seria Harare trocar informações com Maputo?

JG: Exato, porque recentemente o Presidente Nyusi esteve em Harare, tem muito boas relações antigas e históricas com o Zimbabué. A posição que o Zimbabué teve em Kigali, ao dizer que queria trocar impressões com Kigali em relação a Cabo Delgado, deixou no ar uma ideia de descoordenação entre os exércitos que estão a operar em Cabo Delgado. Acho que o mais lógico e o mais prático seria mesmo o Zimbabué deslocar-se a Maputo e ter as informações que pretender. Porque o Exército de Kigali está há pouco tempo, nem tem ainda um mês em Cabo Delgado, para ter informações de estratégia militar e outras para fornecer ao Zimbabué. Isso nota que alguma coisa não está bem aí, e deveria haver melhor coordenação entre as partes, entre Moçambique e os atores da SADC. Portanto, Moçambique deveria passar a prestar também mais atenção e mais informações aos seus parceiros da SADC para evitar que aconteça isto que o Zimbabué fez, ir buscar informação a um outro país que está distante ou daqui da nossa região.

Nádia Issufo
Nádia Issufo Jornalista da DW África
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