Caso Obiang cria imbróglio entre Brasil e Guiné Equatorial
27 de setembro de 2018A apreensão de mais de 1 milhão de dólares e 20 relógios de luxo do vice-presidente da Guiné Equatorial, Teodoro Nguema Obiang Mangue, num aeroporto brasileiro criou um imbróglio diplomático entre os dois países. A Embaixada da Guiné Equatorial no Brasil condenou a ação das autoridades aduaneiras, que classifica como "hostil e de má fé". O vice-presidente é filho do ditador Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, que está no poder há 38 anos.
A comitiva vinda da capital Malabo viajou a bordo do Boeing 777-200, uma aeronave do governo do país africano, e desembarcou a 14 de setembro no aeroporto de Viracopos, em Campinas, São Paulo, com a fortuna distribuída em duas malas. Além dos dólares, foram apreendidos 55 mil reais e um relógio cravejado de diamantes no valor de 3,5 milhões de dólares.
Segundo depoimento do auditor da Receita Federal à Polícia Federal, integrantes da comitiva foram advertidos de que não poderiam entrar no Brasil sem submeter as malas à inspeção. A Embaixada da Guiné Equatorial explicou que Obiang faria um tratamento médico no Brasil, e que o dinheiro seria utilizado em missão oficial posterior em Singapura. Os relógios seriam pertences pessoais do vice-presidente.
Segundo a Embaixada, a viagem do vice-presidente foi programada e autorizada pelas autoridades brasileiras. Para a diplomacia guiné-equatoriana, o delegado da Receita Federal na alfândega em Viracopos "descumpriu os normativos internacionais a nacionais sem qualquer fundamentação", já que Obiang teria imunidade por viajar . A Embaixada descreve a atitude como uma "violação grosseira da prática diplomática internacional", que teve o objetivo de "criar um embaraço totalmente gratuito" a Obiang. As autoridades da Guiné-Equatorial afirmaram que vão protocolar uma nota de protesto normal e oficial "no sentido de reparar integralmente a situação criada".
Ainda não se sabe o que vai acontecer com os bens apreendidos pelo fisco brasileiro. A Receita Federal do Brasil informou a reportagem da DW África que não vai se pronunciar sobre o assunto. Também questionado, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro afirmou que esteve em coordenação permanente com a Receita Federal e a Polícia Federal "quanto à adoção das medidas cabíveis".
Para o professor de Direito Internacional da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luís Renato Vedovato, é estranho que Obiang tenha sido autorizado a regressar à Guiné Equatorial apesar de ter os bens retidos no Brasil. Por outro lado, é preciso esclarecer se o vice-presidente notificou as autoridades brasileiras sobre a viagem.
DW África: A Embaixada da Guiné-Equatorial no Brasil divulgou em nota que o vice-presidente do país, Teodoro Obiang Mang, foi vítima de violação de seus direitos pelos serviços aduaneiros e de imigração brasileiros. O senhor vê alguma violação nesse caso?
Luís Renato Vedovato (LRV): Eu não veria um problema de violação à dignidade. O foco é a questão da imunidade. Se a pessoa não tem imunidade, pode passar por uma revista como aquela. Todo mundo estaria sujeito a isso, portanto, não seria uma violação. Porém, se o vice-presidente fosse recebido como chefe de Estado no Brasil – e essa informação ainda não foi esclarecida pelo Governo brasileiro – ele teria imunidade. O que me intriga é o seguinte: se ele tem imunidade, ele não pode ter a mala revistada. Ele teria proteção caso seja recebido na pessoa de chefe de Estado, mesmo viajando por interesses particulares, como era o caso. Se ele não tem imunidade, ele pode ter a mala aberta, mas é muito estranho ele ter podido voltar para o seu país, porque a partir do momento que ele não tem imunidade ele está na situação de qualquer outro cidadão. Um cidadão comum que viaje com malas com aquela quantidade de dinheiro e de bens, se fosse revistado, não poderia sair do país enquanto não se explicasse.
DW África: Nesse caso, o vice-presidente deveria ter sido detido pelas autoridades brasileiras?
LRV: O crime de lavagem de dinheiro poderia ter sido configurado e ele poderia ter sido detido em flagrante. Nesse caso, a autoridade policial identificaria a situação e eventualmente depois pediria a transformação da detenção em prisão preventiva. O que chama a atenção é que ele já foi condenado fora da Guiné Equatorial. Ele tem uma condenação na França e tem outros processos em países, como Estados Unidos e Suíça. Se ele não tinha imunidade, por que ele não se preocupou com a imunidade ao vir ao Brasil em vista das outras condenações?
DW África: Haveria alguma alternativa à prisão?
LRV: Não fosse o caso de prisão, não fosse um crime identificado pela polícia, tem só um ilícito tributário, que é entrar no Brasil com valores acima de 10 mil reais sem declarar. Poderia ser resolvido pagando o valor do respectivo tributo e dando espaço para a sua defesa. Mas de toda a sorte chama a atenção que pela quantidade de dinheiro não se tenha configurado um contexto de lavagem de dinheiro. Está aí a minha preocupação. A princípio, ele não deveria retornar. Ele deveria ficar pelo menos até se manifestar formalmente num processo perante às autoridades brasileiras.
DW África: Chama a atenção um chefe de Estado viajar com tamanha quantidade de dinheiro em espécie?
LRV: Chama a atenção uma viagem com essa quantidade de dinheiro. Em tese, é porque existem algumas dificuldades para usar os meios tradicionais de pagamento, como o cartão de crédito e outros mecanismos vinculados a um terceiro, que é o banco. Pelo menos, uma investigação para ele se justificar deveria ter acontecido.
DW África: Chefes de estado em viagens oficiais são obrigados a declarar os valores que portam?
LRV: Como ele não tem imunidade, ele não fica sujeito à legislação do país a que ele se destina. Mesmo que ele tenha que respeitar a em regra geral legislação do país ao qual ele se destina, imaginando que ele estava com a proteção da imunidade e que o Brasil seria apenas um país de passagem – ele disse que ficaria apenas alguns dias aqui para uma consulta médica e depois seguiria para a Ásia – o Brasil não teria como fiscalizar que isso aconteceu. É um ilícito, mas não é um ilícito que poderia ser discutido pelas autoridades brasileiras. É uma norma sem dentes. Tudo vai depender de ele mostrar documentalmente que ele teria sido recebido aqui como chefe de Estado ou que o Brasil declare formalmente que ele não foi recebido como chefe de Estado e o Brasil teria que justificar como ele pôde sair do país.