Eleições em Angola: "Então, o morto vota?"
11 de agosto de 2022Domingos Francisco Manuel da Costa faleceu no dia 27 de agosto de 2011, como consta no Boletim de Óbito emitido pela Delegação do Registo Civil de Viana. De acordo com os documentos a que a DW teve acesso, o nome deste cidadão angolano com o Bilhete de Identidade nº 001674687ME035 aparece na lista da Comissão Nacional Eleitoral de Angola como votante na Assembleia de Voto do Bairro do Zango I, província de Luanda. A informação foi confirmada por "Gabriela", nome fictício da filha que tem provas documentais e expressou o seu descontentamento.
"Eu vim cá fazer uma denúncia. Uma vez que o meu pai faleceu em 2011, não é possível ele votar em 2022. Já está morto. Nós não aceitamos isto. Eu, particularmente, não aceito isto. O MPLA tem manipulado a todo o custo todos os cidadãos angolanos, mexendo com o psicológico das pessoas que perderam os seus ente queridos. Isto torna-se algo desumano. São pessoas sem coração", acusa.
Informações recolhidas de várias fontes pela DW confirmam a existência de cerca de dois milhões de angolanos já falecidos que constam nas listas dos eleitores com direito de voto nas eleições gerais do próximo dia 24.
Ministros foram "coniventes"
A DW apurou que há muitos casos similares em Portugal. Mas os familiares evitam expor-se com receio de represálias por parte dos serviços consulares ou das autoridades em Angola.
Ulika Paixão Franco, do grupo de signatários de uma petição que pede a regularização dos Cadernos Eleitorais, fala de falhas no ficheiro de eleitores do Ministério da Justiça de Angola, que, em junho passado, apresentava um número significativo de pessoas falecidas.
"Acontece que, no Ministério da Administração do Território, eles não fizeram qualquer abatimento nesse ficheiro porque dizem que o ficheiro veio do Ministério da Justiça e que eles não podiam mexer no ficheiro. Portanto, os dois ministros foram coniventes com a situação que nós estamos neste momento a viver", afirma.
"Uma maquiavelice incrível"
A cidadã angolana avisa que qualquer resultado que seja apurado no dia 24 de agosto está, à partida viciado, já que os cerca de 2 milhões de pessoas falecidas entre os 14 milhões de eleitores inscritos nos Cadernos Eleitorais correspondem a 10 por cento da população angolana.
Em declarações à DW, o músico angolano Bonga lamenta a ocorrência: "Então, o morto vota? Não, isso é complicado. Isso é uma maquiavelice incrível que tem que ser combatida pela comunidade internacional".
No entanto, Carlos Santos, vice-consul para as Comunidades e responsável pela organização do processo eleitoral em Portugal, diz que a questão não é pertinente para o escrutínio no exterior, uma vez que "os cadernos eleitorais são emitidos a partir de Luanda". O diplomata lembra ainda que "nunca houve eleições na diáspora", pelo que, acrescenta, "não há como vincular esse pronunciamento em relação a Portugal e, de uma maneira geral, na diáspora".
Na diáspora, com voto marcado em Angola
Também há casos de angolanos em Angola e na diáspora que não fizeram o registo eleitoral oficioso, nem possuem bilhete de identidade atualizado, mas cujos nomes aparecem nos cadernos eleitorais com indicação da mesa onde devem votar. Muitos são cidadãos que saíram de Angola desde os anos 80, não regressaram ao país e não fizeram prova de vida exigida em 2015, nem fizeram registo nos consulados, mas os seus nomes aparecem nos cadernos eleitorais com indicação de mesa de voto e local.
Ana Karina, cidadã eleitora angolana radicada em Portugal, conhece muitos casos do género identificados perante a DW no site da CNE. Um deles é o irmão, João Paulo dos Santos Pereira, que não fez o registo eleitoral em Portugal porque na altura tinha Covid-19.
"Ele está aqui em Portugal há cinco anos interruptíveis, nunca votou. Para o meu espanto o meu irmão vai votar no Zango I, na EPAL, em Luanda", afirma. Com BI nº 006866095LA047, João Paulo, nascido a 28/03/1998, vai votar na Assembleia de Voto nº 1738 com o registo nº 5070, segundo a página da CNE.
Ana Karina diz que, de acordo com o decreto sobre a proteção de dados, ninguém deve usar os dados de outrem sem que a pessoa autorize. A advogada foi constituída procuradora do irmão e vai fazer a denúncia para exigir os seus direitos. "E ele, como não deu autorização para que os seus dados fossem utilizados, requer pelo menos que a CNE explique porque é que o fez e responsabilize quem o fez", adianta.
Queixa no Tribunal Constitucional
Se nada acontecer, a advogada acha que o ministro da Administração do Território, Marcy Lopes, deve pedir a sua demissão publicamente.
Por seu lado, segundo revelou Ulika Franco, o grupo de cidadãos angolanos signatários da "Petição Pública pela Regularização dos Cadernos Eleitorais" já entregue em Luanda à CNE, tem apoio jurídico assegurado para apresentar reclamação junto do Tribunal Constitucional.
"Neste momento, estamos já a trabalhar com o nosso patrono jurídico, que é um angolano, professor universitário devidamente credenciado pela Ordem dos Advogados de Angola, e que será responsável pela redação das alegações que iremos apresentar junto do Tribunal Constitucional no sentido de ver reposta a legalidade, em consonância com a lei 36/11, que é a lei que rege a organização e o funcionamento das eleições gerais", explica.