A ferro e carvão: O lado B da diversificação em Angola
14 de abril de 2022Esta é uma história sobre o outro lado da diversificação em Angola, em cinco capítulos.
Um megaprojeto siderúrgico no município angolano do Cuchi prevê criar milhares de postos de trabalho, ao longo dos próximos anos, e contribuir para o desenvolvimento económico da província do Cuando Cubango.
O grande objetivo dos investidores é transformar Angola no segundo maior produtor mundial de ferro-gusa com "selo verde", a seguir ao Brasil. O ferro-gusa é um material usado como matéria-prima na produção do aço – a China e os Estados Unidos da América são os dois maiores importadores.
Mas vários ativistas duvidam da sustentabilidade do megaprojeto no Cuando Cubango e temem que a fatura social e ambiental que o Cuchi já começou a pagar seja demasiado cara.
Será possível diversificar a economia angolana, ter crescimento económico e, ao mesmo tempo, proteger o meio ambiente?
Capítulo 1: Entre o sonho e o pesadelo
O telemóvel vibra, aparece uma notificação no ecrã. Clicamos para ler a mensagem, há novidades do Cuando Cubango.
Muito em breve, a Companhia Siderúrgica do Cuchi deverá começar a fabricar ferro-gusa e já começou a empregar.
Telefonamos a Danilo Danelucci, um dos administradores executivos da empresa. Ele diz-nos que, para já, serão 1.100 postos de trabalho locais. "Até junho, essas pessoas deverão estar a trabalhar".
Segundo Danelucci, "o primeiro alto forno, com 96 mil toneladas, já está instalado. Está na fase final da instalação elétrica". Deverá arrancar a partir de maio ou junho deste ano. "Até 2025, temos a projeção de chegar a um quarto alto forno, para produzir 520 mil toneladas."
Nessa altura, a siderúrgica prevê gerar 4.200 postos de trabalho.
Num cartaz que recebemos por mensagem e na página de Internet, a empresa promete "transformar" a região. Assevera que vai criar oportunidades "para o surgimento de pequenas indústrias de fundição", promover o surgimento de empresas-satélite prestadoras de serviços e impulsionar o comércio local.
A produção será 100% para exportação, acrescenta Danilo Danelucci: "Em Angola ainda não há consumidores diretos de ferro-gusa. Então, existe um impacto na balança comercial com a entrada de divisas no país."
… E se a torneira do crude fechar?
Diversificar a economia é um sonho de Angola há muitos anos.
O país exporta sobretudo petróleo e está exposto às flutuações do preço do crude no mercado internacional. Se o petróleo está em alta, a economia respira – foi o caso nos últimos meses, particularmente desde o início da guerra na Ucrânia, no final de fevereiro – mas se há uma baixa de preços, o país sustém a respiração.
Foi por isso que o Governo criou vários programas de incentivo à diversificação e diminuiu também as barreiras ao investimento estrangeiro.
Há quase quatro anos, durante uma visita à Alemanha, o Presidente angolano, João Lourenço, anunciou que estavam "criadas as condições para uma economia mais aberta e competitiva" com "a nova legislação sobre o investimento privado e a política cambial, a lei da concorrência, a facilidade da circulação de pessoas e a garantia do repatriamento de capitais e da transferência, para o exterior, de dividendos e lucros."
No entanto, continua a haver obstáculos para os empresários, a avaliar pelos últimos relatórios do Banco Mundial.
Abrir uma empresa tornou-se mais simples, mas os empreendedores continuam a ter dificuldades para aceder a créditos. Ter eletricidade sem cortes também é um desafio. Só que não se pode diversificar a economia sem ter corrente elétrica para ligar os computadores e fazer girar as máquinas.
Onde se pode ir buscar energia? Angola tem investido bastante em barragens hidroelétricas, a maior fatia da eletricidade produzida no país provém daí (em 2019, rondava os 79%). Porém, isso não chega, explica o educador ambiental Vladimir Russo: "Nós temos um limite de produção de energia e os projetos de energia hídrica são projetos de longo prazo, que demoram a produzir. Depois, tem de haver linhas de transmissão, que demoram outro tanto tempo."
Por outro lado, quanto mais isoladas estão as comunidades, mais difícil é fazer chegar a rede elétrica. "Temos áreas em Angola onde a densidade populacional anda à volta dos oito habitantes por quilómetro quadrado, particularmente no Leste e na zona do Cuando Cubango. Muito dificilmente conseguiremos trazer energia para uma aldeia que tenha 20 famílias", afirma Russo.
Sendo assim, como se pode diversificar a economia em Angola? E qual o custo?
Para Carlos Ferraz, coordenador nacional da Rede de Desenvolvimento Rural e Agricultura Sustentável (REDRAS) de Angola, o preço que o município do Cuchi já começou a pagar por causa da futura produção de ferro-gusa é demasiado alto.
"A fábrica que estão a montar vai usar uma tecnologia do século XIX, que praticamente ao nível do mundo já não se usa", alerta Ferraz.
… O medo do futuro
Para gerar energia e fabricar o ferro-gusa, prevê-se desflorestar dezenas de milhares de hectares de mata nativa e replantar com eucaliptos. É com essa madeira que se produzirá o carvão vegetal que vai alimentar os fornos da siderúrgica.
Carlos Ferraz joga as mãos à cabeça. "Só para ter uma ideia, um eucalipto necessita de 37 litros de água por dia para a sua sobrevivência, e nós estamos a falar de uma região no sul de Angola que já vive um problema de seca."
Além disso, dentro do perímetro do megaprojeto siderúrgico vivem várias comunidades que terão de sair, segundo Ferraz.
O ativista estima que, até agora, mais de 300 famílias já tiveram de deixar o local, sem que tenham sido devidamente avisadas e sem justa indemnização; outras 17 mil pessoas poderão ser afetadas.
"As pessoas estão a ficar preocupadas porque já sabem que, nesse espaço onde os seus ancestrais morreram, onde nasceram e fazem a sua vida, a qualquer momento serão obrigadas a sair."
É o outro lado da diversificação em Angola, comenta Carlos Ferraz. O megaprojeto do Cuchi é um sonho que se tem tornado em pesadelo para muita gente.
Capítulo 2 – A ferro e carvão
Recebemos uma nova mensagem do Cuando Cubango.
Depois de contarmos a história do Cuchi ao correspondente da DW na província, Adolfo Guerra, ele foi investigar o caso. Uma das pessoas com quem falou foi Alberto André, um habitante do município. Recebemos o áudio da entrevista no anexo da mensagem.
André diz que continua à espera de ver os benefícios do megaprojeto para produzir ferro-gusa: "Em primeiro lugar, era para empregar os jovens no município do Cuchi e noutros municípios do Cuando Cubango. Temos muitos jovens – alguns sabem escrever o nome do pai, outros não sabem – mas esperam fazer qualquer coisa para contribuir para esta sociedade. Agora, está-se a ver…"
A Companhia Siderúrgica do Cuchi ainda não começou a fabricar ferro-gusa. A produção deveria ter arrancado no ano passado, mas terá atrasado por questões logísticas, também por causa da pandemia de Covid-19.
Contudo, o principal ingrediente – o minério de ferro – é adquirido localmente, na mina do Cutato, e já começou a ser extraído e exportado. O primeiro carregamento, no ano passado, foi para a China.
"O ferro está a ir para fora do país. O ferro está a ir", refere Alberto André. "Agora, que benefícios nos traz isso? Para esse povo aqui, qual é o benefício? Nada. Ninguém sabe. Dizem que fizeram análises e que se pode explorar o próprio ferro daqui a 100 anos. Mas qual é o benefício, se [a nós primeiro] é assim? Para onde vamos?"
Na região, quase ninguém com quem conversámos se disponibilizou para gravar entrevista sobre o assunto. Alberto André foi o único que aceitou. Ele é o diretor municipal de educação no Cuchi – recebeu o correspondente da DW no seu escritório, de blazer preto e camisa branca – e contou que está à espera de uma indemnização.
Diz que tinha uma área de cultivo, que recebeu de herança dos avós, mas acabou por a perder por causa do megaprojeto. "Há algumas lavras que estavam ao redor… Eu digo isso, porque a própria área é minha. A minha família cultivava naquela área. Foram desalojados sem remuneração."
Como ele, outras famílias que tinham terras na zona terão sido "convidadas" a sair.
"Todos para fora. [E diziam:] 'Não dá para meter aqui a lavra, não podem passar aqui.' Enfim, nós sabemos como é. A verdade é que não é para sentarem, nem para indemnizarem o cidadão. Não sentaram com a população. Disseram-nos para escrever para não sei onde… e aqui esperamos."
… Direitos constitucionais "ignorados"
Bernardo Castro, diretor executivo da organização não-governamental Rede Terra, investiga o caso do Cuchi há mais de três anos.
Segundo ele, algumas famílias receberam uma indemnização de 150 mil kwanzas (cerca de 300 euros). Outras não receberam nada. Agora, "andam à deriva" noutras comunidades.
"O direito à informação, o direito à participação, sobretudo daquelas comunidades que foram afetadas pelo projeto, esses direitos constitucionais são um imperativo e não foram observados", denuncia o ativista.
A Companhia Siderúrgica do Cuchi diz que não sabe de nada. Em entrevista à DW, Danilo Danelucci garante que as pessoas foram informadas. Houve sessões de esclarecimento "debaixo de árvores", afirma o responsável da empresa, que assegura que tudo foi feito de acordo com a lei angolana.
"Não trabalhamos por conta própria, fazemo-lo sempre em consentimento com a administração [local]. Eles é que organizam essa parte", esclarece Danelucci. "Quando se faz a concessão de terra, eles identificam as populações. Quem tiver de ser indemnizado, com certeza será indemnizado. Desconheço qualquer problema que tenhamos tido de pessoas que realmente estivessem dentro da área antes de iniciarmos o projeto." Até porque a área da siderúrgica é "bem pequena", complementa o administrador executivo.
A DW contactou a administração municipal do Cuchi e não obteve resposta. Porém, Yuri Santos, diretor nacional de Prevenção e Avaliação de Impactos Ambientais (DNPAIA) de Angola, comentou o caso. Ele disse que não tinha conhecimento de "queixas dessa natureza", mas avisou que estava a tomar nota de tudo o que estávamos a dizer.
"Não é nossa pretensão deixarmos de olhar para as questões sociais. Foi-nos garantido, pela documentação que nos foi apresentada, que não foi necessário que as populações locais perdessem as suas lavras", refere.
O diretor da DNPAIA diz que não se pode ignorar "uma comunidade que depende fundamentalmente da caça e de subsistência e passar a olhar [apenas] para a exploração do minério do ferro".
"Se amanhã isso não der certo, do que vai viver essa população?", questiona Yuri Santos.
Capítulo 3 – Muitos hectares e um general
Mas ao ouvir falar sobre o caso do Cuchi, Sabino Calugango diz que não fica admirado.
O oficial de projetos da Federação Luterana Mundial na província do Moxico conta que já ouviu falar de muitos casos do género ao longo da sua carreira.
"É algo frequente. Do dia a dia. Hoje em dia, a terra é um negócio."
Um "negócio rentável" em que as comunidades saem quase sempre a perder, afirma Calugango.
No ano passado, o especialista em conflitos de terras falou sobre o tema numa conferência, em Berlim, da Mesa Redonda das ONG alemãs que trabalham em Angola. Encontrámo-nos com ele.
Calugango disse que os grandes empresários se têm aproveitado de informação privilegiada para ocupar terras no país. "Eles, como são os mesmos que são ministros, generais, governadores, diretores nacionais, têm as informações em termos da potencialidade de recursos naturais e já sabem que campos há. É esses campos que eles vão ocupar."
Segundo Calugango, o sistema é tão sofisticado que nem chega a ser preciso ir ao terreno e tirar coordenadas para clamar as terras – bastará ter acesso a um computador e a imagens de satélite.
"Como eles têm o poder, o próprio administrador municipal tem medo, até mesmo o governador. Nós já fizemos um estudo, com entrevistas a administradores municipais, e eles dizem: 'oh senhor, mas ele veio com um documento nacional, o que é que eu vou fazer?' Nem precisam de falar com a população, nem com os sobas."
Um relatório da Mesa Redonda das ONG alemãs, publicado em 2021, chegou a conclusões semelhantes.
Os investigadores visitaram 14 megaprojetos em Angola; em oito deles o investidor era um militar ou alguém com ligações ao Governo angolano. Os megaprojetos, refere o documento, "funcionaram enquanto o investidor ocupava uma posição alta na província ou no município. No momento em que o investidor saiu desta posição, os investimentos começaram a cair".
Em nenhum dos projetos visitados teriam sido pagas "indemnizações justas" aos populares que perderam as suas terras, alegadamente por "interesse público", e também não teriam sido realizadas "consultas comunitárias verdadeiras".
O Estado angolano investiu milhares de milhões de euros em apoios, mas "os impactos positivos dos megaprojetos, tanto para a economia local como nacional, são quase nulos", conclui o estudo. Os investigadores escrevem que esse dinheiro teria sido melhor investido na diversificação da economia através de "programas que visam o aumento da capacidade produtiva do setor familiar".
… O papel do general Higino Carneiro
Será que as críticas também se aplicam ao megaprojeto do Cuchi?
No município, nem populares, nem sequer a administração local terão sido devidamente informados, insiste Carlos Ferraz, coordenador da REDRAS - Angola.
"A administração municipal e as autoridades tradicionais alegam que nunca foram consultadas para saber as implicações sobre o processo de terra. Simplesmente viram aviões a sobrevoar as zonas e depois apareceram lá os senhores, os donos do projeto, a dizerem que esta área lhes pertence", diz o ativista.
O megaprojeto do Cuchi remonta a 2016 – José Eduardo dos Santos ainda era Presidente da República.
O Jornal de Angola noticiou, na altura, que se tratava de uma parceria entre o Governo e várias empresas brasileiras para diversificar a economia nacional. Segundo o jornal, o "pioneiro do projeto" foi o general Higino Carneiro.
Nas suas "viagens constantes", o então governador do Cuando Cubango tomara nota do potencial da província, com "pradarias e florestas densas", e dezenas de "rios e riachos".
Perguntamos a Danilo Danelucci, um dos administradores executivos da siderúrgica do Cuchi, qual foi exatamente o papel do general no megaprojeto.
"Como qualquer outro governador, de incentivar o projeto a acontecer", responde Danelucci.
"Ficou por aí, pelo apoio político?"
"Tratou-se apenas de apoio institucional do Governo do Cuando Cubango", reitera Danelucci. "Qualquer investidor que vai fazer investimento numa província precisa de estar bastante alinhado com os objetivos da província. E receber um projeto daqueles, numa província que era de terras do fim do mundo, acho que não merece menos do que uma atenção especial."
O responsável salienta que a Companhia Siderúrgica do Cuchi é uma sociedade anónima "100% privada". Não é uma parceria com o Estado.
Face a isto, o ativista Bernardo Castro, da organização não-governamental Rede Terra, fica com uma dúvida: Se, em Angola, "a expropriação só ocorre por utilidade pública, qual foi o procedimento, tratando-se de uma empresa privada?"
Castro diz que é uma matéria que pretende investigar mais a fundo. "Nós não queremos ir contra a empresa, queremos é que ela respeite os direitos humanos e não ponha em causa a ética para a sustentabilidade da área onde opera", afirma.
Capítulo 4 – Duas "mega" dúvidas
Recebemos mais uma mensagem sobre o caso do Cuchi.
Carlos Ferraz, da REDRAS - Angola, enviou-nos vários vídeos de entrevistas que ele e outros ativistas fizeram a populares na região. Num deles, um residente, cujo nome não foi facultado, mostra-se preocupado com a dimensão do futuro megaprojeto siderúrgico na região.
"Falaram de cerca de 200 e tal hectares", diz o residente no vídeo.
"E vocês concordam?"
"Não concordamos."
A primeira grande dúvida sobre o megaprojeto do Cuchi começa logo com a dimensão. O projeto ocupará ao certo quantos mil hectares? E quantos desses hectares terão de ser desmatados para produzir carvão vegetal?
Quando o projeto foi lançado, em 2016, falava-se em 50 fazendas de 5.000 hectares cada uma. Portanto, 250 mil hectares. Parte dessa superfície seria para criar pastagens para gado bovino, para ajudar a diminuir as importações de carne no país. Outra parte seria para derrubar e plantar eucaliptos para produzir carvão em centenas de fornos de tijolo brancos, que já foram construídos e se assemelham a iglus.
Mas quando falámos com Danilo Danelucci, da Companhia Siderúrgica do Cuchi, ele apresentou-nos outros números.
"O projeto foi concessionado para 62 mil hectares", afirmou o administrador executivo.
Insistimos: "Ao todo, quanta floresta nativa vai ser derrubada para produzir o carvão vegetal?"
"62 mil hectares", respondeu Danelucci.
Pegámos na calculadora. Os cientistas estimam que, em média, para produzir uma tonelada de ferro-gusa são necessários 875kg de carvão vegetal e 600m2 de mata nativa. Fazendo as contas com base nestes números, a um ritmo de produção de 520 mil toneladas anuais – a meta da companhia siderúrgica – a madeira dessa área de concessão daria para dois anos.
Telefonámos para o Ministério da Cultura, Turismo e Ambiente de Angola, onde foi apresentado o estudo de impacto ambiental do megaprojeto.
Yuri Santos, diretor da DNPAIA, confirmou que os 62 mil hectares são a área concessionada à Companhia Siderúrgica do Cuchi para a planta da fábrica e para florestação. Mas, de acordo com o responsável, o megaprojeto envolve também uma área à parte, que não terá diretamente a ver com a empresa, onde se deverá desmatar outras dezenas de milhares de hectares. É a área das fazendas.
Segundo Santos, a mata nativa dessas zonas "vai ser aproveitada para a produção de carvão vegetal para abastecer a siderurgia. Prevê-se uma área de supressão vegetal de 200 mil hectares, que será suficiente para suprir a demanda de carvão do projeto nos primeiros 14 anos."
"É um facto, não vamos estar aqui a ocultar", rematou Santos. "Esses 200 mil hectares vão ser desmatados de forma faseada e vai fazer-se o replantio."
Quisemos falar com os responsáveis pelas fazendas, mas não encontrámos um contacto telefónico ou endereço institucional, nem no registo oficial.
Passamos à segunda dúvida sobre o megaprojeto. Derrubar 200 mil hectares de mata nativa – uma área onde a capital da Alemanha caberia duas vezes – e substituir com eucaliptos? Qual é o impacto disto no meio ambiente?
Bernardo Castro, da organização não-governamental Rede Terra, teme que, com a destruição da população vegetal nativa, ocorra uma erosão dos solos.
"A plantação da monocultura de eucaliptos vai provocar o ressecamento de vários ecossistemas locais. Isso é óbvio."
Capítulo 5 – Aritmética climática
Em novembro, o Presidente angolano, João Lourenço, viajou até à Escócia para a cimeira do clima de Glasgow.
Cumprimentou com o cotovelo o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, esteve com o secretário-geral da ONU, António Guterres, e reforçou o compromisso de Angola na proteção do meio ambiente.
"A República de Angola considera as alterações climáticas um dos maiores desafios que enfrenta a humanidade", disse João Lourenço. "Reiteramos aqui a firme vontade e determinação de Angola continuar comprometida com a ação climática e com a adoção de um modelo de desenvolvimento de baixo carbono."
Para ajudar a manter o aquecimento global abaixo dos 1,5º Celsius em comparação com os níveis pré-industriais – e ainda antes de se assistir a uma nova corrida europeia a energias não renováveis depois do estalar da guerra na Ucrânia – Angola assinou em Glasgow uma declaração em que se compromete a intensificar a "conservação das florestas" e acelerar a reflorestação.
Mas não é isso que o país parece estar a fazer na região do Cuchi, no megaprojeto para a produção de ferro-gusa, afirma Daniel Grindis, da organização ambientalista Greenpeace.
"O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas [IPCC, na sigla em inglês] chegou à conclusão de que não podemos perder mais ecossistemas naturais e que temos de restaurar os que perdemos. É alarmante ver que há mais um projeto gigante que prevê pressionar ainda mais o ecossistema", comenta Brindis.
Carlos Ferraz, coordenador da organização não-governamental REDRAS - Angola, diz que, em vez de se proteger a mata nativa, centenas de hectares já começaram a ser derrubados para produzir o carvão vegetal que vai aquecer os altos fornos da siderúrgica do Cuchi.
"E ainda não estão a ser plantados eucaliptos. Simplesmente estão a derrubar as árvores", acrescenta Ferraz.
Danilo Danelucci, administrador executivo da siderúrgica do Cuchi, diz que não são bem árvores, são mais "arbustos".
"Não é uma mata consolidada, é um cerrado. São pequenos arbustos. Não temos como reflorestar se não prepararmos a área", clarifica Danelucci em entrevista à DW.
"Mas são mais do que arbustos, não é? Porque, como disse, há madeira usada para produzir o carvão vegetal…"
"É um cerrado, é a tipologia daquela mata", insiste Danelucci. "Temos de fazer a supressão vegetal na área concessionada para podermos ter a sustentabilidade do projeto."
… Os "desertos verdes"
A Companhia Siderúrgica do Cuchi defende o uso de carvão vegetal. Na página de Internet, a empresa entende que esta é uma opção mais amiga do ambiente, porque garante uma produção "livre de carbono". O carbono emitido durante a fabricação do ferro-gusa seria compensado pela reflorestação com eucaliptos.
É aritmética climática que não convence o ambientalista Daniel Brindis, da organização Greenpeace.
"Produz-se emissões ao desmatar a floresta, quando se transporta e queima a madeira. Ao queimar o carvão também são libertadas emissões. Portanto, é discutível pressupor-se que os eucaliptos vão compensar todas essas emissões. Até porque as árvores levam tempo a crescer. Mas não sei em que estudos se baseiam…"
A empresa diz que tudo foi acautelado, o Governo garante o mesmo.
Questionado pela DW, Yuri Santos, da Direção Nacional de Prevenção e Avaliação de Impactos Ambientais, refere que "os impactos são grandes, mas a utilização da energia renovável do carvão vegetal vai compensá-los."
No entanto, "renovável" não significa necessariamente "sustentável".
Basta lembrar o exemplo do abacate. É um fruto bom para a saúde e tornou-se "moda" um pouco por todo o mundo. Mas com cada vez mais pessoas a consumi-lo, o meio ambiente começou a sofrer. Derrubaram-se vastas extensões de floresta, o solo erodiu e foi contaminado com químicos.
O ambientalista Daniel Brindis explica que o grande problema de desmatar a floresta nativa e plantar monoculturas de eucaliptos é o impacto na biodiversidade.
"Os ambientalistas e os cientistas referem-se a estas áreas como 'desertos verdes', porque não sustentam a vida e não servem de habitat natural como uma floresta normal."
É isso que também tem acontecido na Indonésia com as grandes plantações de óleo de palma, diz Brindis – há várias espécies em risco de extinção, sem falar na erosão dos solos e na poluição das águas. No Brasil, com a expansão das plantações de eucaliptos – igualmente para produzir carvão vegetal para a siderurgia – houve relatos de que a água estava a ser desviada das zonas em redor.
Mais uma vez, a Companhia Siderúrgica do Cuchi garante que foi tudo acautelado: "Em toda a área a ser preservada, em 20 por cento, são criados ali corredores e ilhas com vegetação nativa, seguindo a legislação vigente", diz Danilo Danelucci.
O diretor nacional para a Prevenção e Avaliação de Impactos Ambientais, Yuri Santos, acrescenta que a empresa não só se comprometeu a repor a vegetação devastada, como também a captar os gases que resultam do processo de fabricação do ferro-gusa, para produzir energia.
Santos diz que "as medidas estão todas espelhadas" no estudo de impacto ambiental, "para a conservação do solo, do ar e das águas subterrâneas e superficiais".
O Governo promete acompanhar à lupa o desenrolar do processo. De três em três meses, a empresa siderúrgica terá de apresentar um relatório de desempenho ambiental.
"O cumprimento das medidas de mitigação está espelhado na legislação angolana. O não cumprimento é passível de multas. [Pode haver] até a cassação de licenças."
… A fatura oleaginosa dos países "mais ricos"
Yuri Santos acredita, no entanto, que é possível diversificar a economia angolana – como está a ser feito no Cuchi – e preservar o meio ambiente. O outro lado da diversificação não tem de ser assustador: pode ser socialmente consciente e amigo do ambiente, assegura o diretor da DNPAIA.
"Eu devo reconhecer que, durante a reconstrução do país, não se levou tão em conta as questões ambientais. Mas hoje estamos a sofrer, fruto do que não vimos anteriormente. Temos sofrido com a perda da biodiversidade, a desertificação, a seca, as alterações climáticas", diz.
O "Relatório Económico de Angola" do ano passado alerta que uma das coisas que o país e o mundo têm de perceber, de uma vez por todas, é que os recursos naturais são finitos, e "não há economia sem o meio ambiente".
O crescimento económico a todo o custo não basta, refere o estudo: "Os países 'mais ricos' beneficiaram de um crescimento insustentável e têm agora a tarefa gigante de manter um bom nível de vida ao mesmo tempo que reduzem a pegada de carbono; por outro lado, os países em desenvolvimento enfrentam o desafio de melhorar radicalmente o seu nível de vida, de forma nunca vista, assegurando uma pegada sustentável".
Na América Latina costuma falar-se no conceito de "buen vivir" – viver em harmonia com a natureza, colhendo os seus frutos, mas oferecendo também algo em troca, tentando apagar a pegada humana.
Em Angola, a Constituição é clara neste capítulo: "Todos têm o direito de viver num ambiente sadio e não poluído, bem como o dever de o defender e preservar". Mas na prática, como é que os empreendedores podem ter energia suficiente para diversificar a economia sem recorrer a geradores a diesel ou sem devastar as matas e florestas?
O educador ambiental Vladimir Russo aponta para alguns caminhos que já estão a ser percorridos em Angola.
"Existe um processo de diversificação das fontes de energia. Tem havido um grande investimento na energia hídrica, mas há outras fontes de energia. Em relação à energia eólica, ainda não há muitos projetos. Mas, do ponto de vista da energia fotovoltaica, já há projetos em implementação."
… Os riscos do curto prazo
Angola garante também que se está a esforçar para acabar com a prática de usar os recursos naturais e deitar fora.
Em vez da atual "economia linear", é preciso apostar na "economia circular", sublinhou recentemente o ministro da Cultura, Turismo e Ambiente, Filipe Zau.
"Estamos a tentar transformar o plástico em combustível, o plástico que há em demasia e vai para o mar. Com esse biocombustível estamos a tentar lançar o fomento do turismo", afirmou Zau, questionado pela DW em Lisboa. "Estamos também a olhar para a questão da dessalinização da água do mar para áreas onde não existe água. Estamos a fazer essa primeira experiência no deserto do Namibe, onde há falta de água, mas há praias fantásticas".
É um paraíso por explorar para os turistas. A verdade é que, em Angola, não há falta de lugares como esses, lembra o ambientalista Vladimir Russo. As Pedras Negras de Pungo-Andongo ou as quedas de Kalandula, na província de Malanje são outros exemplos.
O problema, segundo Russo, é que "normalmente, as pessoas vão, passam 30 minutos ali e seguem para outro sítio qualquer, e a comunidade local não beneficia desse turismo."
Mas há muito mais coisas que se podem fazer. Muito mais oportunidades.
"Neste turismo ambiental, é preciso procurar oferecer trilhos, mountain biking, opções de agroturismo – outras atividades que façam com que as pessoas que vão visitar fiquem mais tempo, almocem, comprem uma peça de artesanato, percorram um trilho."
É toda uma cadeia de riquezas por explorar, diz o ambientalista, e não se pode procurar meramente o lucro imediato – é preciso pensar no antes, durante e depois dos projetos.
Há quase dez anos, Eli Lazarus, hoje professor de Geomorfologia na Universidade de Southampton, no Reino Unido, já avisava para esse problema relativamente ao uso de terras para produção. Questionava, por exemplo: Ao desmatar uma floresta centenária nas Filipinas ou drenar um pantanal no Quénia, o que acontecerá se o projeto acabar e os investidores se forem embora?
A conclusão de Lazarus foi que, nos projetos em que houve um "uso invasivo da terra motivado pela extração de curto prazo e pelo retorno rápido do investimento", ficaram feridas ambientais profundas, que podem demorar a sarar.
Adolfo Guerra (Menongue) e João Carlos (Lisboa) contribuíram para este artigo.