Dívidas ocultas: "É assim que agem os criminosos"
28 de maio de 2020Começou na terça-feira (26.05) no Tribunal Superior de Justiça de Londres um segundo julgamento dos ilícitos financeiros relacionados com as "dívidas ocultas" moçambicanas. Desta vez trata-se de uma ação encetada pelo Estado moçambicano contra 10 entidades, entre elas três ex-trabalhadores do Credit Suisse e a Privinvest. O Estado pede que os réus sejam condenados a pagar uma indeminização a Moçambique pelas perdas e danos causados na contração das dívidas, avaliadas em mais de dois mil milhões de euros.
A DW entrevistou o pesquisador da ONG Centro de Integridade Pública (CIP), Borges Nhamire, que acompanha os processos relativos às dívidas ocultas desde o começo, sobre esta nova etapa.
DW África: Qual é a relevância do julgamento de Londres para o processo das dívidas ocultas em Moçambique?
Borges Nhamire (BN): O julgamento em Londres é importante para o processo que decorre em Moçambique porque vai permitir a recolha de mais informação, da mesma forma que o julgamento em Nova Iorque de Jean Boustani foi importante para Moçambique. Depois do julgamento em Nova Iorque, foram conhecidos novos arguidos, conforme anunciou a Procuradora-Geral da República na semana passada na Assembleia da República. Muitos dos novos dez arguidos que foram constituídos, excluindo Manuel Chang, foram revelados no julgamento de Nova Iorque. Portanto, penso que o principal contributo do julgamento é em temos de informação - para alimentar o processo em Maputo, por um lado. Por outro lado, temos que lembrar que a questão central do julgamento é que Moçambique está a pedir a declaração da nulidade das garantias emitidas pelo então ministro das Finanças [Manuel Chang], argumentando que o ministro emitiu as garantias das dívidas da Proindicus sem autorização e que todas as outras pessoas envolvidas no processo das dívidas arrolados na petição contrataram as dívidas em benefício próprio.
DW África: Entretanto, a Privinvest, uma das acusadas pelo Estado moçambicano, entende que o Tribunal não tem competência para a julgar e defende uma arbitragem para o caso. E sabe que as arbitragens, a partida, não são pró-Estado... O que restaria a Moçambique se a arbitragem vier a ser uma opção?
BN: Compreendo a preocupação com a possibilidade de o caso vir a ser dirimido pela arbitragem, mas, neste momento, devíamos antes atender à postura da Privinvest. Esta empresa, cujo negociador principal das dívidas, Jean Boustani, esteve a dizer em tribunal que distribuiu dinheiro a altos funcionários do Estado de Moçambique - deu dinheiro ao diretor do SISE, deu dinheiro ao diretor geral das empresas, deu dinheiro a Manuel Chang, deu dinheiro ao filho do Presidente Guebuza - agora não quer que o assunto seja julgado em tribunal, quer ver o assunto resolvido através da arbitragem. Não, nós estamos a falar de um crime de corrupção internacional, que a Privinvest promoveu no negócio em Moçambique. Isso é julgado em tribunal. E é preciso ver o que a acusação de Moçambique está a dizer - tem duas partes: uma parte é comercial, que está a dizer que as garantias não são válidas. Mas há outra parte, que é mesmo uma acusação de que aquelas entidades lesaram o Estado moçambicano e causaram danos. E está arrolado no processo que aquilo que fizeram é conspiração para defraudar o Estado. Esse é um assunto de tribunais. Sei que esta quinta-feira está programada a audição da Privinvest e, de princípio, esta audição seria pública, mas, à última hora, a transmissão por Skype foi cancelada e a audição passa a ser privada. De alguma forma, vai sair na quinta-feira ou depois a informação sobre o que foi discutido lá, e também será possível requer através dos documentos do tribunal para ver as transcrições. Mas agora é difícil prever o que irá acontecer.
DW África: Surjan Singh, Andrew Pearse e Detelina Subeva, que inicialmente assumiram ter recebido subornos no contexto da contração das dívidas, agora contestam a ação do Estado moçambicano. O que pode significar este "virar do jogo" para o processo moçambicano?
BN: Compreende-se a postura deles, de se declararem inocentes, porque é assim que agem os criminosos. Não restam dúvidas que eles receberam o dinheiro, e as provas da receção do dinheiro foram mostradas, através de contas bancárias que abriram em Abu Dhabi, e os valores estão lá especificados. Eu assisti ao julgamento de Surjan Singh, que recebeu cerca de sete milhões de dólares pela sua participação nesse negócio. Também assisti ao julgamento de Andrew Pearse nos EUA, disse que recebeu 45 milhões de dólares e ainda disse que o dinheiro que recebeu investiu para comprar poços de petróleo na Polónia, e outra parte investiu para comprar propriedades na África do Sul, outro investiu para comprar viaturas desportivas… Ele disse isso em tribunal, em Nova Iorque, porque a Justiça norte-americana tem provas de que ele fez isso. Agora está a contar outra história na Justiça britânica, porque talvez acredita que não haja provas. É daí que defendemos que é importante que os julgamentos sejam feitos em locais onde as entidades que fizeram as investigações têm provas. Mas penso que a recusa deles não vai muito longe, porque tem transcrições do julgamento que aconteceu nos EUA e naturalmente haverá cooperação entre as duas jurisdições, a americana e a britânica.
DW África: Entretanto, em Moçambique, o processo parece ter entrado em letargia. Como interpreta a estagnação do caso?
BN: Efetivamente, o processo em Moçambique foi aberto em 2015, estamos em 2020 e ainda não há sequer data para o julgamento. Mas isso é o que se sabe. A Justiça moçambicana é muito lenta, nunca acontece em tempo útil e as pessoas que se beneficiaram dos bens já se desfizeram deles e não está a acontecer nada. Em 2018 já conhecemos a acusação dos EUA, em 2019 o caso foi julgado. No Reino Unido, o Estado moçambicano submeteu a petição em 2019 e em 2020 está a ser julgado. Em Moçambique, o caso começou em 2015, em 2017 houve uma auditoria da Kroll, que foi a base para a acusação norte-americana, e até hoje não há julgamento. A procuradora tentou justificar que não há julgamento porque a ausência de Chang está a atrasar o processo, mas quando Chang é detido na África do Sul, em dezembro de 2018, o processo em Moçambique já estava em andamento há mais de três anos. O Ministério Público, que a Sra. Buchili dirige, levou a julgamento os assassinos de Anastácio Matavele, morto no ano passado na província de Gaza, e aquele que é apontado como chefe da quadrilha está foragido, mas nem por isso se adiou o julgamento. Essa ausência de data para o julgamento mostra que a nossa Justiça não tem muita capacidade de resolver este assunto - os que têm estão a resolver.
Nota: A empresa Privinvest reagiu à esta entrevista após a publicação da mesma.