Legado Judaico: De Bochum à Cidade do Cabo
19 de janeiro de 2013"9 de Outubro de 1936. Estou sentado aqui no navio "Estugarda" e, finalmente, encontrei o tempo e a paz necessários para organizar os meus pensamentos. E pensar se estou a agir de forma correta, soltando todos os laços e levando a minha família para um futuro desconhecido. O que nos irá acontecer?"
Será o esforço para decifrar a caligrafia antiga alemã no papel amarelado? Ou é a emoção que embarga a voz de Miriam Kleineibst ? A senhora de 89 anos de idade recebe-nos na sua sala, no sexto andar da casa de repouso com o belo nome de "Parque da Boa Esperança". Na sua mão a carta do pai, escrita em 1936 a bordo do vapor "Estugarda" quando fugia da Alemanha.
Miriam cresceu numa comunidade judaica liberal em Bochum. Doze anos de infância despreocupada. Com empregada doméstica, férias de verão na ilha de Spiekeroog, viagens e lutas de bolas de neve com os avós. Nada parecia indiciar o desastre. Embora a família fosse liberal mantinha as tradições judaicas. A comida era kosher, e às sexta-feiras e sábados, iam juntos à sinagoga.
A infância feliz terminou abruptamente com a chegada de Hitler ao poder em 1933. Miriam passou a ser agredida nas ruas por jovens da Juventude Hitleriana (Hitlerjugend – HJ). Acabaram-se as idas ao cinema e o pai viu-se obrigado a fechar a oficina de sapateiro.
Cabo da última esperança
Quem pode deixa a Alemanha, mas os países vizinhos vão fechando as suas fronteiras aos judeus alemães. Mesmo na Austrália, Canadá e América as quotas estão esgotadas.
Na África do Sul, por outro lado, os judeus alemães são bem-vindos. Enquadram-se naquilo que os políticos brancos sul-africanos designam como "bons emigrantes". 2500 chegam em 1936 ao país. Em seguida, porém o vento mudou, políticos racistas na Cidade do Cabo exigem uma quota para estrangeiros. Agora, a família Samson, a família de Miriam, tem de agir rapidamente. Em Outubro de 1936 o "Estugarda" será o último navio a deixar Bremen, na Alemanha, com 570 judeus a bordo, entre eles Mauritz Samson, o pai de Miriam.
Só parte o pai. A restante família permanece em Bochum, cabe a Miriam para arranjar passagens para um dos próximos vapores. Enquanto isso, a mãe aprende costura, com o objetivo de ganhar a vida na África do Sul. Em Janeiro de 1937, Miriam, o irmão Klaus e a mãe, partem de Génova para a África. A mãe faz de tudo para fingir normalidade, mesmo quando a avó se despede dizendo: "Nunca mais nos iremos encontrar". A vida daria razão à avó. Miriam tinha 13 anos quando se reuniu ao pai na Cidade do Cabo. 75 anos mais tarde ela recorda-se, "era um dia muito quente, e tudo o que me interessava era que eu vi o meu pai do navio. Nós chegamos às seis horas da manhã, naturalmente com fome, e o meu pai, que conhecia alguém que trabalhava no navio, deu-lhe um gelado de chocolate para ele nos entregar. O que soube duplamente bem. Gelado de chocolate foi a primeira coisa que comi na África do Sul".
Os primeiros anos no exílio
Miriam adaptou-se rapidamente. No dia seguinte à sua chegada os meninos do novo bairro foram visitá-la. Mais complicado foi para os seus pais. O pai não consegue encontrar trabalho, a mãe mantém a família à tona de água. Em casa apenas se fala agora em Inglês, a fim de facilitar a integração e a procura de emprego. Com o desaparecimento da língua alemã do quotidiano também as tradições judaicas desaparecem. O apartamento onde a família vive é demasiado pequeno para cozinhar kosher. Aos quinze anos Miriam deixa a escola e inicia-se como aprendiz de chapeleira. A África do Sul, combate ao lado dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, e o seu irmão Klaus voluntariou-se para lutar contra a Alemanha de Hitler.
Chega o fatídico ano de 1948. O Partido Nacional ganha as eleições, e posteriormente lança leis numerosas que cimentam o apartheid, a segregação racial. Para Miriam, é um déjà-vu: em vez de "judeus" são agora os "não-brancos", que não se podem sentar nos bancos dos jardins da cidade.
O apartheid no dia a dia
Como reagiram os judeus alemães, apenas uma década depois de fugirem ao terror nazi, ao recente confronto com um sistema desumano? Fomos à procura de pistas. Encontramo-nos com Richard Freedman, director do Centro do Holocausto, na Cidade do Cabo. Há alguns anos atrás esta instituição dedicou uma exposição à emigração alemã para a África do Sul. Também a história de Miriam Kleineibst, foi retratada.
"Os judeus alemães tentaram não dar nas vistas, ficar fora do radar, como tantos outros grupos de imigrantes. Eu acho que é injusto perguntar a sobreviventes do Holocausto: "se já passou por este sofrimento, como pode em seguida, admitir o que aconteceu aqui? " Sim, o apartheid perturbou-os, mas ao mesmo tempo eles estavam ocupados a refazer as suas vidas, a criar uma família, a casar-se, a procurar trabalho, a curar as feridas. E alguns deles até se tornaram ativistas, o que foi um pouco surpreendente. Mas deles nada se podia esperar".
Dar-se ao luxo de lutar
Marcámos encontro com o rabino Richard Newmann na Sinagoga "Templo de Israel". A sinagoga está localizada no Green Point, o antigo bairro judeu da Cidade do Cabo, onde ainda se encontram talhantes kosher e as instituições judaicas que cuidam da comunidade. Há cinco anos, que Newmann, que cresceu em Berlim e viveu no Reino Unido, é responsável pela comunidade judaica de Greenpoint. Antes, trabalhou em Israel, nos EUA e na Alemanha. "A emoção do Holocausto e a Segunda Guerra Mundial na Alemanha, sobre os judeus alemães que emigraram para a África do Sul, foi tão poderosa que eles ficaram emocionalmente esgotados e, portanto, não se envolveram em atividades políticas contra o apartheid. O meu pai, por exemplo, escapou da Alemanha e ficou emocionalmente quebrado. Ele não teve forças para lutar contra um sistema com o qual ele não concordou".
Também à mesa da família de Miriam a política não é um tema. "Eu não me lembro de falarmos de política. O que me interessava era a escola. Os adultos estavam fartos de política na época - o que queriam era viver em paz. Falavam entre eles sobre o que estava a acontecer na Alemanha, é claro. Mas mais nada..."
Mais tarde numerosos judeus juntar-se-ão à luta anti-apartheid. Miriam e outros membros da comunidade judaica de Greenpoint ajudam de forma pragmática: distribuem rações alimentares nas escolas frequentadas por negros, ajudam nos trabalhos de casa. No seu corredor, ainda hoje, tem penduradas cartas de agradecimento.
Ronnie Herzfeld, o mais velho dos dois filhos de Miriam, recorda, "a minha família tentou fazer uma diferença nas suas relações quotidianas. Nós tentamos tratar como pessoas a quem o apartheid tentou roubar a dignidade".
Hoje, a África do Sul é uma democracia que funciona razoavelmente, com uma das constituições mais liberais do mundo. Devido à diversidade demográfica e linguística a "nação arco-íris" esforça-se para que haja um equilíbrio de interesses, embora o clientelismo, a corrupção e a pobreza o tornem difícil.
Também a comunidade judaica sul-africana enfrenta correntes divergentes. O rabino tem de moderar entre os fluxos liberais e ortodoxos e integrar os recém-chegados da Rússia e da Europa Oriental. O shabat aos sábados costuma contar com 250 fiéis, que frequentam a imponente sinagoga.
Herança e identidade
Encontramo-nos uma vez mais com Miriam e seu marido Günther, de 94 anos, vamos até Riebeek-Kasteel, uma pequena cidade de província, entre vinhedos, a norte da Cidade do Cabo. O segundo filho Miriam, Michael, vive aqui com a sua mulher, uma protestante, e os filhos. "Judaísmo é uma parte deles, mas não muito pronunciado. Inclinam-se mais para o cristianismo. O meu neto, por exemplo, é um cristão professo, mas duas vezes por ano, nos principais feriados judaicos acompanha-nos à sinagoga. Nós deixa-mo-los escolher e foi o melhor que fizemos".
Voltamos à Cidade do Cabo. Tomamos um último café na casa do Parque da Boa Esperança, Miriam Kleineibst, olha para a prisão em Robben Island, onde Nelson Mandela esteve preso durante duas décadas. Ao mesmo tempo, ela pode olhar para trás, para três quartos de século em África.
"A minha mãe estava certa quando disse, o destino é uma coisa maravilhosa, desde que ... o empurremos na direcção correcta. Nunca foi fácil, mas foi sempre bom".