Marchantes gritavam "Zedú assassino", diz Rafael Marques ao descrever cortejo de Manuel Ganga
27 de novembro de 2013A marcha que acompanhava a pé o funeral de Manuel Hilberto Ganga chegou a ser interrompida pelas forças de segurança angolanas. Polícias fortemente armados lançaram gás lacrimogéneo sobre algumas das pessoas que participavam no cortejo fúnebre, alegando que não tinham autorização para deixar passar uma marcha apeada.
Após um impasse de uma hora e meia, a polícia fez um acordo para que os participantes não realizassem a pé o percurso até ao cemitério de Santana, em Luanda. Já no cemitério, alguns dos presentes impediram a Televisão Pública de Angola (TPA) de trabalhar, acusando-a de estar a serviço do regime.
Presente na cerimónia esteve o ativista angolano Rafael Marques de Morais que ficou indignado com o aparato policial - foram mobilizados cerca de 30 agentes da Polícia de Intervenção Rápida (PIR), além de dois carros com canhões de água e vários helicópteros.
Em entrevista à DW África, o jornalista não poupa críticas à atuação das forças de segurança.
DW África: Rafael Marques, como decorreu o cortejo e o funeral do líder juvenil da CASA-CE, Manuel Hilberto Ganga?
Rafael Marques: As cerimónias foram interrompidas por uma atitude brutal da Polícia Nacional, sobretudo da Polícia de Intervenção Rápida que tentou dispersar a procissão-funeral com gás lacrimogéneo, com a cavalaria, blindados, com a brigada canina, com dois helicópteros da polícia e um do exército nacional. Um dos helicópteros sobrevoava mesmo por cima do carro funerário, rodando bastante poeira para ver se as pessoas se afastavam do funeral, porque o Ganga teve um funeral como há muito tempo não se via.
Aliás, foi mesmo um funeral político, em que representantes das várias cores políticas da sociedade civil marchavam em direção ao cemitério, numa procissão de pouco mais de um quilómetro, e a polícia tentou impedir aquela aglomeração de gente que ia crescendo à medida em que o funeral ia prosseguindo, precisamente para evitar que o Ganga chegasse ao seu destino final, o cemitério, com as honras que ele bem merecia: como um mártir. E as camisolas diziam que ele era um mártir.
Durante uma hora e meia o cortejo fúnebre ficou parado por uma barreira policial que disparava gás lacrimogéneo diretamente para os membros da caravana. Mas, mesmo assim, o que foi extraordinário foi notar a resistência dos cidadãos.
DW África: Depois do que aconteceu na manifestação de sábado (23.11), esperavam realmente que houvesse uma forte intervenção policial?
RM: Na verdade, não se esperava isso, porque a polícia inclusive chegou a conversar com os dirigentes da CASA-CE e com a família e garantiram a segurança do cortejo nos primeiros 10, 15 minutos. Correu sem qualquer incidente.
Mas, por acaso, perguntei-me como seria possível marchar durante uma hora, porque os cânticos responsabilizavam o Presidente da República como assassino. Tenho aqui uma transcrição do que as pessoas diziam: "Zedú assassino, o povo não te quer."
Depois, há também um cântico que irrita bastante o Governo, porque é uma expressão que o [Jonas] Savimbi usava de forma recorrente e que se tornou numa espécie de hino anti-governamental: "primeiro os angolanos, segundo os angolanos, terceiro os angolanos, os angolanos sempre." E quando estes cânticos começaram a subir de tom, a polícia não viu outra forma, por ordens de quem quer que seja, senão reprimir o funeral.
DW África: Podemos dizer que as pessoas em Angola perderam o medo de se manifestarem e dizerem o que pensam?
RM: Eu estava ao lado de uma senhora, vendedora de rua, e quando a senhora viu a marcha passar disse-me: "As pessoas do dia 23 de novembro já não são as pessoas do dia 26 de novembro. Angola mudou!" Porque as pessoas não tiveram medo. As pessoas prosseguiram mesmo diante da polícia, mesmo diante daquele aparato repressivo.
DW África: Depois de terem sido surpreendidos pelo forte aparato policial, esperava-se que o dia terminasse da pior forma, hoje?
RM: Notava-se claramente que havia, da parte da polícia, intenção de gerar algum tipo de conflito para justificar a repressão. Porém, as pessoas foram muito sensatas. E também, para muitos agentes da polícia, era estranhíssimo que se tivesse que reprimir um funeral. É a coisa mais surreal que aconteceu em Angola nos últimos anos. Hoje, esta polícia é claramente fascista.
DW África: Pode-se dizer que existe uma ruptura entre o MPLA e a população? É o que o Rafael tem defendido?
RM: Sim, existe uma ruptura, porque este funeral provou que, de facto, os dirigentes já não se portam como cidadãos angolanos. Quer dizer, todo aquele sentimento de patriotismo, até de relacionamento com a população, terminou aqui, com este funeral. Quer dizer, é mesmo um poder que está ali instalado e que se tornou estrangeiro para a população.
Mesmo os militantes do MPLA, e havia muitos nas ruas, manifestavam-se contra e desabafavam. Como era possível estarem a reprimir com gás lacrimogéneo e helicópteros um funeral!