O massacre esquecido de Angola
9 de junho de 2011Mais de 30 anos depois, o 27 de maio de 1977 ainda é tema tabu em Angola. O que mais parece chocar na repressão que se seguiu à alegada tentativa de golpe de Estado contra o primeiro presidente angolano após a independência, Agostinho Neto, é que as vítimas não foram inimigos do governo – mas sim membros do MPLA, partido no poder e, assim, da própria família política da direção do país.
O desconhecimento sobre o que aconteceu às vítimas da repressão do regime do Presidente Agostinho Neto, nos dias que se seguiram ao que terá sido uma tentativa de golpe, corrói.
O cálculo dos mortos varia. A Amnistia Internacional fala em 40 mil, o jornal angolano Folha 8, em 60 mil e a chamada Fundação 27 de Maio em 80 mil. Fontes da DISA (Direção de Informação e Segurança de Angola) referem-se a 15 mil mortos. Se nos ficarmos pela média, pelos 30 mil, são dez vezes o número de mortos do Chile dos anos 1970 de Augusto Pinochet, na própria família política o MPLA. Sem julgamento.
Sitta Vales, o rosto da “purga” do MPLA
Ela deu ao horror um rosto. Sitta Vales foi fuzilada às 5 da manhã de 1 de Agosto de 1977. Um tiro em cada perna, um tiro em cada braço, o corpo caiu na vala previamente aberta antes de ser dado o tiro de misericórdia. O corpo, ou o que dele restava: Sita Valles havia sido torturada e violada múltiplas vezes pelos homens da DISA. Rebelde até ao último minuto, recusou a venda e obrigou os homens do pelotão de fuzilamento a enfrentarem o seu olhar.
A portuguesa, nascida em Cabinda, tinha então 26 anos e trocara uma vida confortável em Portugal e um curso de medicina para regressar a Angola, país que considerava ser o seu e para defender a ortodoxia soviética em supostos tempos de democracia.
Sita Valles é talvez a mais conhecida das vítimas da purga do MPLA – ela, o marido José Van Dunem, comissário político do Estado Maior e Nito Alves, ex-ministro do Interior.
“Ainda estou preso”, afirma jornalista independente
Mas, de uma forma ou de outra, a repressão que se seguiu ao 27 de maio de 1977 deixou marcas na vida de grande parte dos angolanos, relata o jornalista independente William Tonet. “Direta ou indiretamente, a maior parte dos angolanos daquele tempo está envolvida no 27 de maio. Eu estive envolvido no 27 de maio, a minha família esteve envolvida, a partir do meu pai, que foi preso. Dois tios meus estiveram presos e foram enterrados vivos, sem qualquer tipo de julgamento”, disse Tonet, em entrevista à Deutsche Welle.
“Matemática e juridicamente falando, eu ainda estou preso”, denunciou o angolano. “Porque a gente não tem formalizado, sequer, nenhum mandado de soltura, como não tem nenhuma acusação. Sofremos sevícias sobre um crime que nos foi imputado e que não chegou a ser provado”, continuou.
William Tonet lembrou ainda as palavras do primeiro presidente angolano naquela altura: “E nunca, inclusive, se deu a oportunidade às pessoas que eram apontadas como querendo dar um golpe de Estado a Agostinho Neto, de serem ouvidas. Porque ele disse que ‘não haveria julgamento’ e que ‘nem perderiam tempo com julgamento’. Portanto, foi uma autêntica barbárie”, afirmou.
Decapitados sem razão conhecida
Há relatos de famílias chacinadas, presos enterrados vivos, corpos lançados de aviões ou ravinas, fuzilamentos arbitrários, tortura aplicada com uma crueldade indescritível. As cadeias eram sucessivamente cheias e esvaziadas. Estudantes que estavam na União Soviética , na Bulgária, na Checoslováquia e noutros países de leste foram mandados regressar e muitos foram decapitados sem se conhecer a razão. Nas faculdades, desapareceram cursos inteiros. Desapareceram também novos e velhos militantes do MPLA, ministros e chefes militares.
Para o historiador português José Milhazes o então presidente Agostinho Neto instrumentalizou os acontecimentos de 27 de maio de 1977. “O 27 de maio foi uma ‘inventona’ [revolução imaginária] criada por parte de Agostinho Neto e pela então parte da direção do MPLA, que aproveitou a manifestação do Nito Alves – que não tinha por objetivo a tomada do poder nem a realização de um golpe de Estado – para neutralizar fações muito importantes dentro do movimento [MPLA] que tinham divergências para com ele”, avalia.
Em causa estavam no fundo divergências ideológicas entre Agostinho Neto, adepto de uma via “terceiro mundista” para Angola, com características semelhantes à argelina, e Nito Alves, advogado da ortodoxia soviética. Em Angola não podia haver contra revolução popular e, por isso, Neto, o presidente poeta, foi irredutível: ‘não haverá perdão para quem pense de forma diferente da linha oficial do MPLA’.
Apesar da dimensão do massacre, o tema é tabu, explica José Milhazes: “É que alguns dos intervenientes ainda estão no poder. Quero recordar que o presidente José Eduardo dos Santos, naquela altura, era já um membro da direção do MPLA e que participou diretamente no conflito”, lembra o historiador.
Autora: Helena Ferro de Gouveia / Renate Krieger
Revisão: António Rocha