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Falta de eleições credíveis gera "violência", diz CIP

Henry-Laur Allik
29 de janeiro de 2020

Centro de Integridade Pública de Moçambique denuncia mais de meio milhão de votos fraudulentos nas eleições gerais. Alerta ainda para "grande retrocesso" na democracia e que os moçambicanos "não cruzarão os braços".

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Mosambik Borges Nhamire
Foto: DW/J. Beck

No seu relatório final de observação das eleições gerais de 2019, publicado esta quarta-feira (29.01), o Centro de Integridade Pública (CIP) de Moçambique refere que "secretismo e fraude sem precedentes" tornam "impossível saber o real resultado das eleições" gerais de outubro passado.

O documento faz menção a 557.000 votos indevidamente atribuídos ao candidato presidencial da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), Filipe Nyusi, através do enchimento de urnas e do recurso a eleitores-fantasma, ou então retirados à oposição.

Em entrevista à DW África, Borges Nhamire, investigador do CIP, alerta para o risco de "conflitos" que o Governo "não legitimado" poderá enfrentar, uma vez que "a vontade do eleitor é claramente negada".

Moçambique: Falta de eleições credíveis gera "violência"

DW África: O relatório não é exatamente muito otimista em relação ao que se passou nas eleições gerais recentes em Moçambique. Porquê?

Borges Nhamire (BN): Conseguimos mais do que ninguém, em Moçambique, recolher toda a informação sobre o processo eleitoral, a partir de pessoas locais, no terreno, que ficaram lá mais de dois anos a acompanhar o processo. Portanto, estamos com informação suficientemente detalhada para dizer que, efetivamente, as eleições não foram transparentes, justas e livres, e a transparência que houve neste processo eleitoral foi da abertura na sua manipulação. Houve transparência nesse sentido, porque as irregularidades foram cometidas à luz do dia, à vista de todos os que estiveram lá para observar as eleições.

DW África: Se foram cometidas à luz do dia, como é que não houve, imediatamente, protestos e intervenção, por exemplo, de observadores estrangeiros?

BN: O processo de observação eleitoral segue determinados protocolos, principalmente por observadores internacionais, que devem emitir relatórios findo um determinado período. A União Europeia (UE) emitiu um relatório preliminar de observação eleitoral e destacou lá as irregularidades que houve. Por exemplo, num terço das mesas visitadas pela UE houve manipulação de preenchimento de editais, houve intimidação. Consta do relatório preliminar, emitido depois da votação, antes da validação e proclamação dos resultados pelo Conselho Constitucional. Depois da validação dos resultados, a Missão de Observação Eleitoral da União Europeia, que é uma missão constituída por um conjunto de Estados com relações com Moçambique, a única coisa que lhes cabia fazer era reconhecer o Presidente eleito para continuar a parceria e relações que têm com o Estado moçambicano.

A Missão de Observação Eleitoral dos Estados Unidos da América, através da Embaixada norte-americana, emitiu também um relatório a destacar todas as irregularidades nas eleições. A Missão de Observação Eleitoral do Instituto para a Democracia Sustentável em África (EISA) emitiu igualmente um relatório a destacar as irregularidades. As missões de observação eleitoral da Comunidade de Países da África Austral (SADC), da Comunidades dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da União Africana (UA), idem, fizeram isso. A diferença entre eles e nós é que nós somos moçambicanos. Estamos a fazer a observação de eleições no nosso país.

Agora que as eleições terminaram, começa a governação por um Governo eleito sem legitimidade, com base num processo eleitoral  manipulado. As consequências desta governação, quem vai enfrentar somos nós. É uma governação baseada em clientelismo para satisfazer os interesses de todas aquelas pessoas que trabalharam para a manipulação do processo eleitoral. Não é uma governação baseada nos interesses dos cidadãos, porque estes, expressos nas urnas, foram manipulados.

Mosambik Wahlauszählung in Maputo
CIP denuncia mais de meio milhão de votos fraudulentos a favor do Presidente Filipe Nyusi ou retirados à oposiçãoFoto: picture-alliance/AP Photo/F. Momade

DW África: Será que há uma possibilidade de se chegar a números concretos sobre quais são os resultados verdadeiros ou não?

BN: Trouxemos no nosso relatório alguns números, com base na informação que conseguimos recolher. Pode ler-se que, por exemplo, a vitória de Filipe Nyusi foi inflacionada em cerca de meio milhão de votos. Isso é o que conseguimos provar metodologicamente. Lê-se, no relatório, que a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) perdeu, pelo menos, cinco deputados em função da manipulação do processo eleitoral. Infelizmente, não há capacidade em Moçambique para fazer a cobertura completa da observação, correspondente a 20 mil mesas instaladas. O contexto não permite, por uma razão que está escrita no relatório: a condição para a observação do processo eleitoral é a acreditação pelos órgãos de gestão eleitoral e estes órgãos, cumprindo ordens do partido no poder, não emitiram credenciais para muitos observadores, incluindo os do CIP.

Ficámos mais de seis meses à espera de credenciais em Nampula, na Zambézia não foram emitidos, e foram entregues só no último dia quando já não era possível distribuir as equipas no terreno. Num país com tantos problemas de comunicação como Moçambique, com credenciais no último dia, antes da votação, não há capacidade para mandar pessoas percorrerem centenas de quilómetros para as assembleias de voto para distribuir as credenciais, quando a lei diz que a credencial deve ser emitida cinco dias após a submissão do pedido. Os números são aproximados, daí que defendemos que é preciso fazer uma auditoria independente ao processo eleitoral, que nos possa ajudar a explicar quais são as margens de fraude reais nesse resultado de Filipe Nyusi. Uma auditoria completa ao processo eleitoral é importante para a integridade e legitimidade dos dirigentes eleitos.

Joseph Hanlon: As"piores" eleições em Moçambique

DW África: Perante o cenário que descreve, será que se pode pensar num retrocesso na democracia em Moçambique, com estas eleições?

BN: É um grande retrocesso, sim. Depois das eleições autárquicas de 2018, que inauguraram este padrão de fraude nos termos em que foi visto agora, a Economist [Intelligence Unit], no seu relatório global da avaliação da democracia, baixou o rating de Moçambique para "Democracia Autoritária". As eleições de 2019 seguiram o padrão das eleições de 2018 e pioraram a situação, se calhar porque estas decorreram em todo o país. Portanto, é um grande retrocesso, na medida em que a vontade do eleitor é claramente negada. Para dar um de vários exemplos, nas eleições anteriores, os votos nulos nas mesas eram depois requalificados na Comissão Nacional de Eleições (CNE). Este processo era aberto ao público, aos jornalistas, aos observadores. Tratava-se de uma recontagem de votos nulos. Neste processo havia recontagem de votos da oposição que tinham sido inutilizados nas assembleias de uma forma fraudulenta, abrindo espaço para uma recuperação. Desta vez, a lei eliminou esta possibilidade, não houve requalificação de votos na CNE aberta ao público. É um grande retrocesso.

Pela primeira vez, vimos um Conselho Constitucional de Moçambique, considerado tribunal eleitoral de maior instância, a alterar o acórdão duas vezes, sem nenhuma comunicação. Ou seja, publicaram um acórdão no dia 23 de dezembro e, em janeiro, alteraram o mesmo documento e não anunciaram a alteração, escondendo a operação aos moçambicanos. Isso constitui um grande retrocesso na democracia em Moçambique. Se nada for feito pelos moçambicanos e seus parceiros, esta situação normaliza-se e deixamos de ter eleições credíveis no país. Quando se deixa de ter eleições credíveis, a história mostra que as pessoas recorrem à violência e outras formas de acesso ao poder, porque as eleições não são mais um mecanismo credível para designação dos dirigentes.

DW África: Este é um tema de debate público em Moçambique?

BN: Este debate, se ainda não está a acontecer, terá de acontecer, porque a democracia é resultado de um processo de luta dos moçambicanos. Não é algo que tenha sido oferecido pelas elites. Se esta democracia está a ser retirada aos moçambicanos, então eles terão de voltar a lutar para a sua restauração. Os moçambicanos não cruzarão os braços a assistir à instalação de um regime autoritário, mais cedo ou mais tarde, porque não estão satisfeitos com a situação. O debate [público] pode não acontecer muito em meios formais, porque a sociedade moçambicana está sujeita à manipulação dos meios de comunicação públicos e privados, dos espaços de debate como as universidades, que deviam ser centros de debate. As universidades são controladas pelo poder político, os reitores das universidades são nomeados por despachos presidenciais.