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Talibés: os escravos da era moderna

Vanessa Raminhos18 de maio de 2016

Mário Cruz é o vencedor na categoria Temas Contemporâneos da competição World Press Photo 2016, com o projeto “Talibés: Modern Day Slaves”, onde retrata as condições em que mais de 50 mil crianças são forçadas a viver.

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Foto: Mário Cruz

No Senegal, as Daaras – ou escolas corânicas – são, tradicionalmente, conhecidas por darem uma educação religiosa e ensinarem árabe a crianças entre os cinco e os 15 anos. Essas crianças são conhecidas como Talibés, um termo árabe que significa “disciplina”.

Este método tradicional de educação tem vindo a tornar-se, na última década, uma forma de escravatura moderna. Todos os dias, durante oito horas, as crianças Talibés pedem nas ruas do Senegal, de acordo com as exigências dos “marabouts” – os que lhes deveriam dar a sua educação.

Em 2009, na Guiné-Bissau, o fotojornalista português Mário Cruz cruzou-se com esta realidade pela primeira vez. Nas ruas, ouviam-se relatos de crianças que se pensava terem sido raptadas para serem levadas para o Senegal, onde seriam vítimas desta moderna forma de escravatura.

Cerca de cinco anos depois, o fotógrafo rumou até ao Senegal, para documentar esta realidade. O projeto “Talibés: Modern Day Slaves” (“Talibés: Escravos da Era Moderna”) demorou seis meses a ficar concluído.

Fotograf Mário Cruz - Projekt Talibes Kids
Estima-se que mais de 50 mil crianças no Senegal sejam vítimas desta forma de escravaturaFoto: Mário Cruz

"O que eu encontrei foi uma tradição completamente subvertida. Muitos locais que deveriam ser escolas são, neste momento, espaços de tortura no Senegal. E encontrei esta tradição de uma forma muito, muito descontrolada no Senegal”, recorda Mário Cruz.

“Existem mais de 50 mil crianças sujeitas a isto, existem inúmeras Daaras que não são, de todo, uma escola e que não é onde se encontra um método de ensino respeitável”, explica o fotógrafo que percebeu nessa altura que “a falta de prova, a falta de testemunho do que realmente se estava a passar tinha contribuído imenso para que esta tradição tivesse mudado tanto na última década.”

Uma realidade conhecida, mas ignorada

Dividiu-se seis meses entre o Senegal e a Guiné-Bissau, um dos países que mais sofre com a realidade do tráfico de crianças para o universo Talibé.

Apesar de esta ser uma realidade conhecida por todos, inclusive pelas autoridades, Mário Cruz admite que a maioria das pessoas olha para o lado e ignora estas crianças.

Fotograf Mário Cruz - Projekt Talibes Kids
Nas Daaras, as condições em que estas crianças vivem são degradantes e propícias à propagação de doençasFoto: Mário Cruz

“Perturbou-me imenso a indiferença que existe. As pessoas sabem que os Talibés existem. É verdade que vem de uma tradição que já não é o que era. Mas todos os anos se comemora o Dia Internacional do Talibé, no dia 20 de abril, todos os anos se falam em medidas que o Governo terá de aprovar, medidas que ainda estão no Parlamento e que têm de ser aprovadas”, recorda.

Estas escolas são pouco vigiadas pelas autoridades e, na maioria, as condições são degradantes. A estas condições, propícias à propagação de doenças como malária ou problemas respiratórios e dermatológicos, juntam-se os abusos físicos que, na maioria dos casos, acontecem por trás das portas das Daaras.

O acesso a estas escolas corânicas é bastante restrito e encontram-se em locais bastante isolados no Senegal. “Esta é uma rede criminosa muito grande, não conseguimos perceber como é que uma rede criminosa desta dimensão está ligada, porque muito destes falsos professores corânicos chegam a ter mais do que uma Daara e cada um destes espaços pode ter 30, 40 crianças que são escravizadas todos os dias”, explica Mário Cruz.

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Os Talibés são obrigadas a mendigar diariamente e são vítimas de abusos físicos. Poucas conseguem pedir ou conseguir ajuda, e a maioria sabe que “é simplesmente impossível ter o dinheiro que é imposto por estes falsos professores corânicos, os marabouts”.

“Perturbou-me imenso perceber que os abusos físicos já são tão comuns que já não existe qualquer tipo de pudor em cometê-los, seja à minha frente, seja à frente de qualquer outra pessoa”, recorda o fotojornalista.

A visibilidade poderá ajudar a salvar estas crianças

Em fevereiro, Mário Cruz foi galardoado com o primeiro prémio na categoria Temas Contemporâneos, do reconhecido prémio de fotografia internacional World Press Photo. Para o fotojornalista, a visibilidade que o projeto conseguiu poderá ajudar a dar a conhecer a realidade destas crianças.

"Muitas crianças já foram resgatadas depois do World Press Photo. Claro que já tinham sido anteriormente também, mas depois do World PressPhoto houve um grande número de crianças resgatadas. O governo senegalês também entrou em contacto comigo para utilizar algumas fotografias numa campanha que irá percorrer o país para consciencializar e sensibilizar as pessoas para o que se está a passar”, afirma o jornalista.

Apesar do prémio e da atenção que o projeto recebeu, as imagens não chegaram as todos os senegaleses e guineenses e, para Mário Cruz, a divulgação do que se passa nestas Daaras é um passo bastante importante para terminar com estes abusos às crianças.

Fotograf Mário Cruz - Projekt Talibes Kids
Depois de serem forçadas a pedir dinheiro nas ruas do Senegal, os Talibés são vítimas de abusos físicosFoto: Mário Cruz

“Apesar de o tráfico de crianças contribuir imenso para os números dos Talibés, muitos dos pais ainda acreditam que é um sistema de educação bom para os seus filhos. Muitos dos pais senegaleses entregam os seus filhos para estas Daaras e muitos deles não se apercebem que, neste momento, muitos destes sítios já não existem para educar crianças”, alerta o fotojornalista.

Para colmatar a ausência e a falta de espaço na divulgação destes abusos, o próximo passo é publicar as imagens em livro, de modo a poder chegar a ainda mais pessoas e pressionar as autoridades a agir, e assim garantir um melhor futuro para estas crianças.

“O objetivo é angariar 24 mil euros. Esse dinheiro servirá para criar mil exemplares que serão distribuídos mundialmente. Uma parte considerável será fornecida a escolas e bibliotecas no Senegal e na Guiné-Bissau, mas também estamos a tentar que seja possível entregar os livros a outros países limítrofes ao Senegal.”

Para angariar o montante, está a decorrer uma campanha na plataforma Kickstarter. Cada pessoa poderá contribuir com qualquer montante, para ajudar à publicação do livro.