Dívidas ocultas: Tribunais britânicos "lavaram as mãos"
12 de março de 2021O Tribunal de Recurso de Inglaterra e País de Gales determinou que o caso das dívidas ocultas, que envolve várias empresas estrangeiras e que lesou o Estado moçambicano em mais de dois mil milhões de euros, não será julgado por um tribunal inglês.
A decisão resulta de um recurso apresentado pela Privinvest no qual a firma libanesa terá procurado provar que, nos contratos de fornecimento de equipamentos e serviços de proteção costeira a empresas moçambicanas, as partes convencionaram que seria o Tribunal Internacional de Arbitragem da Suíça o órgão competente para decidir sobre eventuais disputas.
Para o especialista em Direito Internacional André Thomashausen, com a decisão da Justiça britânica, o Estado moçambicano deverá entrar em desvantagem na guerra judicial contra a Privinvest, uma vez que os tribunais de arbitragem não privilegiam os Estados quando se trata de dirimir conflitos.
DW África: Que motivos terão determinado a decisão do tribunal inglês?
André Thomashausen (AT): O tribunal deu prioridade ao que está no contrato. Os tribunais costumam fazer isso, ou seja, fazer prevalecer o que as partes de um acordo concordaram. O acordo principal tem uma cláusula em que os litígios e diferendos devem ser resolvidos seguindo a Lei da Arbitragem da Suíça. Assim o tribunal considerou essa vontade das partes e não uma outra regra que se encontra num outro contrato em que se referia à jurisdição dos tribunais britânicos.
É uma decisão prudente, porque assim os tribunais britânicos lavam as mãos deste caso quente, desta batata quente. Também dão a consideração devida ao facto de que não foram os bancos britânicos nem as autoridades britânicas que construíram todo este império de dívidas, de pagamentos ilícitos e de possíveis crimes. Foi um grande banco suíço, o Credit Suisse, que depois arranjou um outro banco num consórcio, mas o banco principal é o banco suíço. A [responsabilidade] é da autoridade da fiscalização dos bancos na Suíça e é do Governo suíço, que autorizou a transferência de um empréstimo enorme de dois mil milhões de euros.
DW África: Moçambique ainda pode recorrer dessa decisão?
AT: Não vi o julgamento, mas creio que não, porque trata-se já de uma decisão de segunda instância, portanto está esgotada a hipótese de recurso. Normalmente não existe um segundo recurso.
DW África: Não sendo a arbitragem na sua essência um modelo favorável ao Estado, pode afirmar-se que a Privinvest entra em vantagem para esta guerra com o Estado moçambicano na Suíça?
AT: É possível que sim. A defesa da Privinvest foi sempre no sentido de que se tratou de um negócio, de uma transação comercial, na base de um plano elaborado pelo Governo moçambicano, para instalar capacidades de fiscalização marítima e de marinha de guerra. Moçambique é um Estado soberano e na altura deveria ter sabido bem o que estava a fazer. Moçambique deve apresentar provas que mostrem porque é que as entregas falharam. Aí há um grande perigo para Moçambique, porque a própria Privinvest deve ter as instruções que provinham do Estado sobre que pagamentos deveriam ser feitos e para quem, bem como foram dirigidas essas entregas.
A Privinvest argumenta que não tem culpa nenhuma, que nunca desviou nada e que simplesmente agiu na base das instruções que estava a receber da parte moçambicana. É aí que a coisa vai começar a ser muito interessante, porque quando conhecermos essas correspondências e esses pormenores, vamos ver que o grande culpado do desaparecimento de grande parte daquele dinheiro foi mesmo Moçambique e não os agentes comerciais.
Os agentes comerciais, normalmente, não agem por conta própria, agem na base das instruções que recebem. Encaixam o seu lucro, mas existe fiscalização. Esta tentativa de Moçambique de atirar as culpas ao empresário foi sempre um bocado arriscada.