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História

"Troika está a destruir ideais da revolução portuguesa"

Guilherme Correia da Silva24 de abril de 2014

O político português critica a austeridade imposta pela União Europeia. Em entrevista à DW África, Alegre recorda também a luta contra a guerra e o dia em que Amílcar Cabral lhe disse que lia Camões aos combatentes.

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Foto: M.Riopa/AFP/GettyImages

Manuel Alegre nasceu e cresceu num tempo de ditadura. O dirigente histórico do Partido Socialista (PS) português nasceu em 1936, três anos depois do início do regime fascista do Estado Novo em Portugal.

Alegre combateu na guerra colonial em Angola para depois não o acusarem de desertor, diz hoje. Mas o político garante que sempre lutou pela democracia e contra o colonialismo. Por isso, à semelhança de outras vozes críticas na altura, Manuel Alegre foi perseguido pelo regime ditatorial português. Um dos seus locais de exílio foi a Argélia, onde trabalhou para a rádio Voz da Liberdade, contra o fascismo.

O caminho da oposição à ditadura fez com que Manuel Alegre se cruzasse com os grandes líderes dos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas: Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Samora Machel.

DW África: Em 1962, foi mobilizado para a guerra em Angola. No país, liderou uma tentativa de revolta militar, segundo a sua biografia oficial. Que tentativa foi esta?

Manuel Alegre (MA): Quando cheguei a Angola, havia uma situação muito tensa. Foi quando o governador, o general [Venâncio] Deslandes, fez uma crítica ao Governo por não concretizar a instalação em Angola de uma universidade, tal como tinha sido prometida pelo Adriano Moreira, ministro do Ultramar. E isso criou uma grande tensão, que era favorável, nessa altura, a uma certa conspiração.

Eu estive envolvido numa conspiração que envolvia muita gente. Gente como eu, que tinha uma consciência política antifascista e anticolonialista, oficiais milicianos, que tinham participado na luta estudantil, em Coimbra, em Lisboa e em vários pontos e que me conheciam a mim, mas também oficiais do quadro, que estavam revoltados com aquela situação. Então, houve ali um esboço de conspiração para uma revolta militar, mas que foi abortada pela denúncia de um dos oficiais implicados.

DW África: Esteve preso durante seis meses na sequência desta tentativa. É na prisão que ouve pela primeira vez a rádio Voz da Liberdade.

MA: Isso é uma história mirabolante. Depois dos interrogatórios, uma noite eu estava na minha cela e ouvi, de facto, a Voz da Liberdade. Porque eu estava numa cela isolado, mas perto do gabinete onde ficavam os "pides", que ouviam várias rádios à noite. E ouvi "esta é a Voz da Liberdade, a emissora da Frente Patriótica". Nunca tinha ouvido falar naquilo. Pensei que era uma coisa nova e fiquei muito espantado.

40 Jahren Nelkenrevolution in Portugal Manuel Alegre und Mario Soares
Manuel Alegre (esq.) e Mário Soares numa manifestação do 1º de maio de 1975Foto: casacomum.org/Arquivo Mário Soares

Depois, vim a saber, através das coisas que se sabem na prisão e de algumas visitas, que tinha havido um anúncio nos jornais e que aquela era a emissão da Frente Patriótica que tinha sido instalada em Argel, onde iria depois ter o general Humberto Delgado e onde, passado um ano, eu também iria ter.

DW África: Que papel teve a rádio no processo de descolonização?

MA: Não, a rádio desempenhou sobretudo um papel na luta contra o fascismo e contra a ditadura, porque era uma voz livre portuguesa. Não havia censura. Mas também dávamos notícias sobre a guerra.

Talvez a coisa mais importante tenha sido uma entrevista que eu fiz ao Amílcar Cabral, que falou de uma maneira inesperada para muita gente, porque ele assumiu uma parte da História portuguesa. Assumiu o poeta nacional, Camões. Disse que ele próprio lia poemas de Camões aos combatentes, que celebravam alguns feriados portugueses, como o 5 de Outubro.

Enfim, disse coisas que mesmo as pessoas da esquerda portuguesa, nessa altura, tinham um certa inibição em dizer, uma vez que o fascismo tinha assumido e subvertido alguns desses valores nacionais. E ele, desinibidamente, falou de Camões, dos Lusíadas. E disse esta coisa extraordinária: "Não é mentira, não. Os portugueses deram realmente novos mundos ao mundo. Aproximaram povos e continentes. E o Salazar é que está a desfazer tudo isso com esta guerra."

DW África: Também conheceu Agostinho Neto, Samora Machel...

MA: Sim, conheci-os todos. Samora Machel, Eduardo Mondlane... Aliás, é um momento triste, porque eu almocei com o Eduardo Mondlane no Cairo na antevéspera de ele ser assassinado. Almocei com ele, ele partiu para Dar es Salaam, chegou, rebentou-lhe a bomba e ele morreu.

DW África: Lembra-se de algum episódio que o tenha marcado desses encontros?

MA: Todos eles eram diferentes. O Amílcar Cabral era uma personagem extraordinária. Costumo dizer que tinha uma "luz". Ouvi-o falar várias vezes em sessões internacionais e ele marcava, sendo um líder de um movimento de libertação de um pequeno país. Tinha realmente um dom especial.

Bildergalerie 40 Jahre Nelkenrevolution 40 Jahre Unabhängigkeit
Amílcar Cabral, fundador do PAIGCFoto: casacomum.org/Documentos Amílcar Cabral

O Agostinho Neto era uma figura muito interessante, um poeta, mas um homem mais reservado. O Samora Machel era um homem exuberante, que não tinha formação universitária, vinha da guerra, mas percebia-se que tinha uma inteligência intuitiva raríssima. O Eduardo Mondlane era um homem que tinha essa experiência das universidades americanas. Enfim, cada um deles tinha a sua personalidade.

Lembro-me de um episódio que não vou esquecer. [Em Argel,] recebíamos desertores que vinham da Guiné. Muitos deles não vinham por razões políticas, vinham por outras razões: ou porque estavam para ser punidos, porque tinham roubado ou por qualquer outra razão. E um dia recebemos lá uns que não eram assim de grande confiança. E soubemos através de outros desertores que eles, quando estavam em Conacri, tinham pensado em cortar a cabeça ao Amílcar Cabral e voltar para Bissau. Eu estava com o Piteira Santos e contámos isto ao Amílcar Cabral. Ele olhou para mim, com os olhos muito abertos, e disse: "Se um dia for morto, serei morto por um homem do meu povo, do meu partido e, provavelmente, um fundador." Nunca mais esqueci e foi verdade.

DW África: Sente-se, de alguma forma, traído por aqueles que defendeu na altura da rádio, quando eles embarcaram na direção do monopartidarismo? No caso de Agostinho Neto, Samora Machel…

MA: Nós lutávamos pela liberdade do povo português, contra a ditadura. E lutávamos pelo fim da guerra e pelo reconhecimento do direito à autodeterminação e à independência. Não nos competia a nós dizermos o que eles deviam fazer, nem a eles vir dizer-nos o que nós devíamos fazer. Eram coisas diferentes.

Lembro-me de uma vez ter tido uma pequena questão com o Amílcar Cabral. Ele deu uma conferência de imprensa dizendo: "Estou disposto a ajudar o Dr. Marcello Caetano a ser o de Gaulle português". Eu fiquei um pouco irritado com aquilo e ele explicou-me: "Não, eu estou a lutar pela independência do meu país. O nosso problema não é o vosso, que é um problema de regime." E assim era, realmente. A nossa luta era para derrubar a ditadura, instaurar a democracia e pôr fim à guerra, porque considerávamos que a condição fundamental de libertação do povo português era o reconhecimento do direito dos povos colonizados à autodeterminação e independência.

Esse processo era quase inevitável, porque era o período da Guerra Fria, da influência dos dois blocos. E aqui, quando fizemos a nossa independência, também não havia pluralismo. O Afonso Henriques não fez pluralismo partidário. Esses processos de edificação de um país, de construção de uma nação, passam normalmente por uma personalidade forte e por um regime único. É quase inevitável.

DW África: Que balanço faz da descolonização?

MA: Este processo foi trágico para o povo português e para os povos africanos, porque a guerra durou muito tempo. Se nós tivéssemos naquela altura telemóveis, computadores, os meios eletrónicos que há hoje, a guerra não tinha durado mais do que três ou seis meses. Nem tanto. Mas não havia.

A guerra durou muitos anos. Não houve "Dien Bien Phu" em África, quer dizer, não houve uma derrota militar estrondosa das forças portuguesas. A situação militar era muito grave na Guiné, não era em Angola, em Moçambique era complicada.

Manuel Alegre recorda a luta contra a guerra colonial

Mas foi sobretudo a consciência da parte do Movimento das Forças Armadas (MFA) de que o regime era incapaz de oferecer uma solução política e que aquela situação tinha chegado ao fim. E que, para haver uma solução política, era preciso resolver o problema português e derrubar a ditadura. Evidentemente que tudo teria sido mais simples se em Portugal houvesse democracia ou se, por exemplo, o Marcello Caetano tivesse feito uma certa abertura do regime para negociar a paz. Mas isso não aconteceu. E, portanto, aquela descolonização foi o que foi, porque dificilmente se calhar teria sido de outra maneira.

Manuel Alegre
Manuel Alegre alerta para "situação explosiva" na EuropaFoto: Imago

DW África: Olhando para trás, o 25 de Abril valeu a pena?

MA: Claro que o 25 de Abril valeu a pena. Foi o momento mais alto das nossas vidas e da nossa geração. Pusemos fim a um regime de ditadura que durou quase meio século, que negou a liberdade aos portugueses e que fez um campo de concentração, o Tarrafal. Fez a censura, abafou a vida dos portugueses, obrigou muita gente a ir para fora do país, expulsou da universidade as grandes figuras portuguesas, asfixiou economicamente, socialmente e culturalmente o país. Viveu pelo medo, pela asfixia. Não fazia aquelas repressões sangrentas como na América Latina nem como o Franco depois da guerra civil. Mas quando era preciso matar, matava. Matou o general Humberto Delgado e outros opositores. E, sobretudo, fez de Portugal um país muito atrasado.

DW África: Quando olha para o Portugal de hoje, os ideais da Revolução estão por concretizar?

MA: A revolução tinha três objetivos: descolonizar, democratizar e desenvolver. A revolução democrática, a descolonização e o desenvolvimento foram feitos, tal como a Constituição da República, que é muito progressista e que consagrou os direitos sociais inseparáveis dos direitos políticos.

Troika está a destruir ideais da revolução portuguesa, afirma Manuel Alegre

A segurança social pública, o serviço nacional de saúde, o direito à saúde, o direito à habitação, a escola pública... Coisas que nunca tinha havido em Portugal e que criaram um progresso imenso no país.

Agora, tudo isso está a ser destruído por esta situação de resgate em que nos encontramos, pelas condições duríssimas que nos estão a ser impostas pela chamada "troika" e também pelo facto deste Governo se estar a aproveitar dessa circunstância para realizar o seu próprio programa ideológico.

Isto tem a ver um pouco com a situação que se vive hoje na Europa, que nada tem a ver com o projeto europeu, como um projeto de paz e prosperidade partilhada entre nações iguais e soberanas. Isso não existe. Temos hoje essa entidade mítica chamada "mercados", que se sobrepõem aos próprios Estados democráticos e às instituições democráticas do país. E temos depois o papel da Alemanha, que é desagradável falar, mas de que eu falo. A Alemanha tem hoje um papel fortíssimo na Europa e, ao impor esta política de austeridade, está a criar uma situação explosiva no continente. Ou há uma viragem, ou, mais tarde ou mais cedo, a Alemanha vai pagar o preço desta política.

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