Tumultos em França: "O que está a acontecer é revolta"
3 de julho de 2023Mais de 700 pessoas foram detidas no último fim de semana nos tumultos que há dias abalam a França após a morte de um jovem de 17 anos, baleado por um agente da polícia nos arredores de Paris.
Quinta e sexta-feira (29 e 30.06) foram dias de caos total na capital e noutras cidades francesas. Vários bens públicos e privados foram vandalizados, conta à DW Flávio Ferreira, ativista e político guineense residente em Paris há vários anos.
A morte do jovem, de origem argelina, voltou a reacender um velho debate sobre o racismo em alguns países europeus.
A França nega ter um problema sistémico de racismo ou discriminação na polícia. Mas o ativista Flávio Ferreira diz que a morte do jovem Nahel foi apenas a gota que fez transbordar o copo para os manifestantes, que criticam as "falhas" do Governo na integração social dos migrantes.
DW África: Como está a situação neste momento em Paris?
Flávio Ferreira (FF): A situação acalmou nas últimas 24 horas. Hoje, a vida começou a retomar ao normal, embora ainda se sinta o cheiro a viaturas queimadas [nos tumultos dos últimos dias]. As pessoas foram trabalhar, algo que não aconteceu por exemplo na quinta e sexta-feira passadas.
DW África: Significa que na quinta e sexta-feira esteve tudo paralisado?
FF: Esteve quase tudo parado e, de sábado para domingo, decretaram na minha zona um recolher obrigatório entre as 22h00 e as 06h00, porque os jovens ameaçavam queimar praticamente tudo o que fosse do Estado francês. A polícia está praticamente em toda a parte, está em todas as esquinas, e isso evitou mais destruição.
DW África: Estas manifestações dificultaram o dia-a-dia?
FF: Dificultaram sobretudo nos transportes públicos. Eu, por exemplo, moro a cerca de cinco quilómetros do local onde aconteceu essa tragédia e, nessa zona, parou praticamente tudo. As ruas estavam bloqueadas, havia tanques de lixo queimados e o Estado mandou parar os transportes públicos para evitar mais tumultos.
DW África: Esta fúria dos manifestantes tem somente a ver com a morte deste jovem de origem argelina ou é um movimento contestatário ao Governo?
FF: A maior parte dos manifestantes diz que é um problema racial; a França tem vivido, nos últimos tempos, muita tensão racial. Por isso, quando acontece algo do género, as pessoas vão logo ao extremo e pensam que é racismo, sobretudo quando o jovem é muçulmano e de origem árabe. Isso tem outra conotação. [Acredito que há um] sentimento de vingança [e punição da] polícia para que algo do género não volte a acontecer.
DW África: Como é que o Governo tem reagido a estas manifestações?
FF: Tem pedido às pessoas para se acalmarem. Pediu aos pais para impedirem os filhos de saírem às ruas, para evitar vandalismo. Acho que isso era a única coisa que podiam fazer, porque é difícil controlar os jovens. Os jovens que estão a fazer isso são franceses, nasceram cá - podem ser de origem estrangeira, mas são franceses - e o que está a acontecer é revolta.
Às vezes, as condições de vida aqui em França deixam a desejar. O Governo francês não soube fazer uma integração mais eficaz da comunidade de origem estrangeira. Há bairros aqui em França em que mais de 90% dos residentes são de origem estrangeira, e isso dificulta a integração. Em certas escolas, não se vê uma única criança de origem francesa ou europeia.
DW África: Será segregação racial?
FF: Sim, quem conhece a França sabe que é assim, sobretudo desde os anos 1990.
DW África: Essa suposta segregação racial é institucionalizada?
FF: Não diria que é institucionalizada. Mas, por exemplo, quando uma pessoa vai à procura de uma casa para residir, há certos bairros em que basta [ao senhorio ouvir] um sotaque estrangeiro ou um nome árabe para não arrendar a casa. É uma situação infeliz, mas receio que é algo que vá continuar em França ainda durante bastante tempo.