Um engodo? Os Sidat e o negócio biométrico em Moçambique
28 de junho de 2024A pressão por eleições sem fraude terá sido um dos fatores que levou as autoridades moçambicanas a optar por tecnologia biométrica no recenseamento eleitoral em 2018. Contudo, nem isso garantiu transparência e verdade, segundo uma investigação do consórcio de jornalismo investigativo Lighthouse Reports.
Em nome da credibilização de uma democracia duvidosa, vendeu-se "gato por lebre"?
"A tecnologia biométrica foi vendida como uma solução para eleições mais credíveis e mais transparentes, mas não é o que se constata na realidade", diz Beatriz da Silva, uma das jornalistas envolvidas no estudo da Lighthouse Reports.
Depois da investigação, divulgada esta semana pela Bloomberg, ficou "claro que esta tecnologia acaba por se transformar numa via para criar novas formas de irregularidades, como se testemunhou no último recenseamento, enquanto ao mesmo tempo se torna um negócio lucrativo para empresas locais e estrangeiras."
Ligações à FRELIMO, no poder
Que o diga a família Sidat. De acordo com a investigação, a empresa Artes Gráficas, da família Sidat, em parceria com a empresa sul-africana Laxton, domina a modernização eleitoral. O contrato inicial desse consórcio com o Estado foi de 24 milhões de dólares, um valor três vezes superior ao custo total da eleição anterior, alocação que intriga a monitoria da sociedade civil e não só.
"Há uma família bem conectada à FRELIMO, a família Sidat, que é beneficiada em milhões de euros, através de contratos eleitorais, tanto públicos como de ajuste direto", explica Beatriz da Silva. "E nas últimas eleições trouxeram uma empresa estrangeira, a Laxton, para providenciar a tecnologia de biometria. O que acontece é que houve uma inflação de eleitores em zonas simpáticas à FRELIMO e complicações em áreas de oposição."
Os Sidat, que se notabilizaram no país como comerciantes de material escolar, não só se expandiram a setores como o imobiliário, mas também ascenderam a esfera governativa, através de um partido hoje apelidado de "mercantilista": a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Os Sidat são também ativos no futebol: Um dos sócios da Artes Gráficas, Feizal Sidat, é o presidente da Federação Moçambicana de Futebol (FMF), acusado de gerir a instituição como o seu quintal.
Conflito de interesses? Como uma "capa"?
Sobre o negócio relacionado com a tecnologia biométrica, em conflito de interesses estaria Shafee Sidat, da FRELIMO, se fizesse parte da estrutura societária da Artes Gráficas, o que não é o caso, garante Shafee.
"Eu não faço parte da Artes Gráficas, eu sou presidente do município de Marracuene. Que eu saiba, não conheço essa sociedade Artes Gráficas. Qualquer coisa que queira falar comigo, mande-me por email", disse brevemente Shafee Sidat à DW.
Os Sidat são próximos das elites frelimistas já desde o consulado do Presidente Armando Guebuza, ligações que são frequentemente questionadas pela oposição. Lutero Simango, líder do Movimento Democrático de Moçambique (MDM), faz ouvidos de mercador às palavras de Shafee.
"Não há só incompatibilidade, mas também conflitos de interesse. Esse é o dilema que temos em Moçambique", comenta Simango. "No fim do dia, não conhecemos os verdadeiros acionistas dos muitos negócios que ocorrem à nossa volta. E isso se deve à ausência de transparência".
Parcerias sempre com ligações à FRELIMO?
Ainda assim, o Estado não se inibiria de entregar "de mão beijada" biliões dos cofres públicos a entidades questionáveis, sem concurso público, isso sem falar da falta de know-how.
A única especialista em modernização do sistema eleitoral no consórcio é a Laxton, facto que reforça as suspeitas de que a imposição de um parceiro local ligado à FRELIMO é condição sine qua non para investidores estrangeiros operarem em Moçambique.
No caso, Lázaro Mabunda, jornalista e investigador do Centro de Integridade Pública (CIP), não chega a ilibar a Laxton, mas denuncia a suposta mão criminosa de funcionários do Estado nos processos eleitorais: "A biometria está a revelar que também pode ser manipulada pelos agentes eleitorais", refere.
Os problemas com a tecnologia biométrica
A título de exemplo, Mabunda revela casos de registo eleitoral fora das horas normais de trabalho ou ainda demoras excessivas para substituição de máquinas avariadas, mesmo existindo sobresselentes.
Nem irregularidades como estas inibiram as autoridades eleitorais de classificar o recenseamento como muito bem sucedido.
Questionado pela DW sobre as supostas manipulações e vícios no processo, o porta-voz da Comissão Nacional de Eleições (CNE), Paulo Cuinica, não se mostrou disponível a dar detalhes, apenas afirmou: "Graças a Deus, o recenseamento correu muito bem. Já encerrámos esse processo, divulgámos os resultados, estão em Boletim da República."
Lutero Simango discorda de que terá havido um suposto "engodo" com o recenseamento eleitoral biométrico, mas reconhece que houve vícios.
"Primeiro, não acredito que houve fracasso no sistema biométrico. Mas posso ter a certeza absoluta de que houve uma sabotagem, porque a introdução do sistema biométrico visava atribuir a todo o cidadão o documento único, e assim não haveria necessidade de um recenseamento eleitoral", explica o líder do MDM.
Além disso, o sistema biométrico deveria conduzir Moçambique "a um outro sistema de votação."
O país realiza eleições gerais a 9 de outubro num clima de elevada desconfiança em relação a administração eleitoral, por supostamente servir aos interesses do partido no poder, a FRELIMO, que conhece bem o lema "a vitória constrói-se, a vitória organiza-se", eternizado por Samora Machel.
Lazáro Mabunda, do CIP, não tem dúvidas de que as consequências da viciação, já denunciada pela sociedade civil, serão sentidas nessa altura.
"O efeito imediato das manipulações vai-se refletir na vitória por números estrondosos da FRELIMO, como também no número de assentos no Parlamento", conclui Mabunda.