Jornalistas do Canal de Moçambique constituídos arguidos
26 de junho de 2020Os Ministérios da Defesa e do Interior em Moçambique não gostaram de ler no jornal Canal de Moçambique uma notícia que, segundo eles, violou segredos do Estado. O semanário publicou, em março último, uma informação que dava conta de um contrato assinado em fevereiro de 2019 entre a "Anadarko" (agora "Total"), a "Eni" (entretanto "Mozambique Rovuma Venture") e os dois ministérios, alegadamente para garantir a segurança dos trabalhadores na região de Palma, em Cabo Delgado.
Com o título "O negócio da guerra em Cabo Delgado", o jornal estampou o suposto contrato entre as empresas e os dois ministérios. Os pagamentos pelos serviços seriam depositados num banco comercial, ainda de acordo com o jornal.
Arguido reage
Em reação à notícia, sem confirmar explicitamente a veracidade do contrato, o Ministério da Defesa enviou uma carta ao Canal de Moçambique a condenar a publicação do "documento classificado como confidencial". E os jornalistas Fernando Veloso, diretor do semanário, e Matias Guente, editor executivo, foram constituídos arguidos por alegada "violação de segredo de Estado".
Matias Guente diz que não se sente intimidado: "O Estado tem que garantir que o jornalista exerce a sua atividade dentro de um clima de segurança e independência". O editor do Canal de Moçambique critica que haja "procuradorias atrás dos jornalistas, não por terem cometido crimes, mas porque o Estado tem um entendimento errado daquilo que é a vocação jornalística, quando interpreta a vocação jornalística como uma vocação criminal".
O profissional explica ainda que, havendo um crime de violação do segredo de Estado, quem o cometeu não foi o jornalista. "Porque o jornalista, a partir do momento em que recebeu aquele documento, que é de interesse público, tem o dever profissional de o publicar. Os jornalistas não têm segredos de Estado. Não roubámos a "Total" nem o Ministério da Defesa para ter acesso ao documento", defende em entrevista à DW África.
Contratos são confidenciais?
O MISA-Moçambique, Instituto para a Comunicação Social da África Austral, prometeu pronunciar-se oportunamente sobre o caso.
À DW África, o jornalista Lázaro Mabunda comenta que a tese de que os contratos assinados entre as entidades são confidenciais não convence: "Os contratos que envolvem bens públicos são públicos, e o gás é um bem público, de todo o moçambicano. Então o contrato do gás, no norte, não pode estar em confidencialidade", argumenta.
Mabunda acrescenta que, se esses contratos fossem, de facto, segredo de Estado, nem sequer teriam sido publicados.
"Se essas pessoas que cuidam dessas informações as tiram para fora deixa de ser segredo de Estado. E se qualquer pessoa, ou jornalista, tem [acesso a] essas informações, então há um problema dentro do próprio Estado. Então, o Estado deve responsabilizar as pessoas que cuidam da informação do segredo de Estado, porque classificam essas informações", conclui.
Acusação justifica-se?
Sob o ponto de vista jurídico, também não faz sentido que os jornalistas do Canal de Moçambique sejam levados à barra da Justiça, afirma o advogado Amílcar Chongola.
"Pessoalmente, acho que não houve nenhuma violação do segredo de Estado, porque o Canal divulgou uma situação sobre determinadas pessoas. Então, qual o segredo de Estado nessa situação?" - questiona o advogado.
"Acho que não há segredo de Estado porque está a se falar de uma situação concreta e de pessoas determinadas. Não são pessoas que estão a executar tarefas do Estado nesse sentido. Agora, se estivessem a executar um mandato do Estado, aí sim, se calhar poderíamos falar de segredo de Estado", analisa.
Se o Estado entende que os contratos assinados pelas partes para garantir a segurança na exploração do gás natural, face aos ataques em Cabo Delgado, são confidenciais, o jurista Amílcar Chongola não tem dúvidas: "Olhando para a nossa Constituição, é dever do Estado garantir a segurança de pessoas, de bens e de entidades. Se alguém pediu de forma especial essa proteção, qual é o problema nessa situação? Não há nenhum problema em publicar numa situação como essa, porque está a se falar de algo que é normal de um Estado e não de algo excecional", interpreta o jurista.
O Canal de Moçambique já foi notificado, e o jornalista Matias Guente deverá ser ouvido pelas autoridades na próxima semana.