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Moçambique: Pacientes de saúde mental vivem acorrentados

Marta Cardoso
9 de outubro de 2020

Dia Mundial da Saúde Mental: Acorrentados ou em coletes-de-forças, são alguns dos maus-tratos que pessoas com deficiências psicossociais sofrem em Moçambique. Denúncia consta de um novo relatório da Human Rights Watch.

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Symbolbild Weltfrauentag Faust in Ketten
Foto: picture-alliance/dpa/dpaweb

Mundialmente, cerca de 792 milhões de pessoas, uma em cada dez - incluindo uma em cada cinco crianças e adolescentes - têm patologias de saúde mental, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Mas nem sempre os doentes são devidamente tratados e em condições dignas.

A prova está no relatório da Human Rights Watch (HRW), lançado esta semana, intitulado "Viver acorrentado". O documento contém evidências de pessoas com deficiências psicossociais que foram acorrentadas e confinadas em condições desumanas em 60 países, incluindo Moçambique.

A organização não-governamental aproveitou o Dia Mundial da Saúde Mental, que se assinala este sábado, 10 de outubro, para lançar a campanha global "Romper As Correntes" com o objetivo de pôr fim ao acorrentamento de pessoas com deficiência psicossocial.

Um dos investigadores do relatório, Samer Muscati, diretor adjunto da divisão dos direitos das Pessoas com Deficiência da HRW, relatou à DW que, em Maputo, testemunhou em primeira mão, "um homem numa igreja que tinha as pernas atadas a um pau de madeira e os braços presos num colete-de-forças, simplesmente porque tinha um distúrbio mental."

Quando Muscati visitou a igreja o homem estava a tentar matar-se "porque estava a ser mantido num quarto muito pequeno atrás da igreja. Foi por isso que o trouxeram para a rua e o amarraram", relata.

Espíritos malignos nos doentes mentais

Muitas rezas e arrependimento foi a "prescrição" feita por um pastor a este doente, que nunca foi devidamente diagnosticado por um médico. O veredito do pastor é de que está sob influência do diabo.

Uma crença forte em Moçambique é a de que as perturbações de saúde mental resultam de espíritos malignos.

"A partir daí as pessoas são encaradas com muito estigma na sociedade", conta Clodoaldo Castiano da ONG Associação Moçambicana de Usuários de Saúde Mental.

Explica que o que agrava a situação "é a falta de apoios que essas pessoas têm, sociais e económicos, o que leva com que aquela situação de doença mental acabe se associando a outros problemas sociais negativos, como a pobreza, falta de habitação,…”

Trancados contra vontade 

Samer Muscati
Samer Muscati (HRW): “Penso que a solução passa pelos Governos banirem legalmente estas práticas“. Foto: Privat

A falta de apoios, o estigma e o desconhecimento sobre como ajudar os doentes são alguns dos motivos que levam as famílias a trancá-los em casa ou a entregá-los a centros de cura tradicionais ou religiosos com práticas punitivas.

O responsável da HRW relata que conheceu um senhor que tinha sido algemado diversas vezes ao longo da vida e que isso o perturbava imenso cada vez que acontecia. "Ele disse-me que aquilo era um castigo, não um tratamento. E que o estavam a tratar como um animal. Nenhum ser humano devia ser tratado assim.”

"Ele chegou a conseguir fugir de um curandeiro tradicional, com a madeira agarrada à perna, mas foi apanhado. Implorou à mãe para voltar para casa, mas foi devolvido ao centro de cura tradicional. E isso é muito perturbador", admite Muscati.

Segundo o relatório, este cenário expõe estas pessoas a situações de violência física e sexual - sobretudo as mulheres, muitas delas apenas com depressão pós-parto - para além de piorar a já frágil saúde mental dos doentes.

Sistema de saúde deficitário

O responsável da Associação Moçambicana de Usuários de Saúde Mental diz que o próprio sistema de saúde mental no país é completamente ultrapassado e insuficiente. Acrescenta que o sistema de tratamento é ineficaz:

"Dão antibióticos e todos aqueles químicos, mas em pouco tempo a pessoa volta a ter recaída. Esses acorrentamentos acontecem dentro do próprio sistema de saúde. No hospital psiquiátrico [do Infulene, em Maputo], há pessoas que reportam terem sido amarradas." 

Combater o estigma da epilepsia no Zimbabué

Castiano defende que é "obrigação do estado definir instituições que possam dar tratamento adequado" e queixa-se da percentagem do orçamento do ministério da saúde que vai para a saúde mental:

"É vergonhoso. É menos de 1%. Com isso não é permitido imprimir melhorias no sistema de saúde mental. Não é possível garantir os direitos das pessoas."

A lei internacional é bastante clara: não se deve acorrentar, nem torturar pacientes em tratamentos de saúde mental.

Mas apesar de ser difícil implementar essas leis, o primeiro passo, para Samer Muscati, começa com a proibição legar destas práticas por parte dos Governos.

"E depois há que garantir que há infraestruturas disponíveis para assistir propriamente estas pessoas e integrá-las na sociedade. "

Romper o estigma

Mas o maior desafio, conclui, é mudar a forma como a população encara a saúde mental.

"Só quando as pessoas entenderem que as pessoas com problemas de saúde mental são pessoas iguais às outras na sociedade e que não devem ser estigmatizados, é que nós podemos evoluir", analisa Muscati.

Um dos objetivos da Associação Moçambicana de Usuários de Saúde Mental, que Clodoaldo Castiano ajudou a fundar em 2016, é precisamente quebrar o estigma em relação à saúde mental.

A ONG é constituída por pessoas com deficiência psicossocial e assenta no princípio do "Role Model” (exemplo a seguir). Através de campanhas de sensibilização, mostram às comunidades que pessoas com deficiência psicossocial, beneficiando de apoio necessário, conseguem participar na sociedade.

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