1979:Vaticano pune teólogo por inquirir infalibilidade papal
Publicado 18 de dezembro de 2015Última atualização 18 de dezembro de 2019O então cardeal de Colônia, Joseph Höffner, havia convocado uma entrevista coletiva para a tarde de 18 de dezembro de 1979, sem anunciar o assunto. Pouco antes do encontro com os jornalistas, um emissário da embaixada do Vaticano entregou em Tübingen uma carta da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício). "O professor Hans Küng – declarou o cardeal Höffner – diverge da integridade da fé católica em seus escritos. Por isso, ele não pode ser considerado teólogo católico nem continuar lecionando como tal".
Era o desfecho de um conflito de dez anos entre Küng e o Vaticano. O teólogo suíço, radicado na Alemanha, foi proibido de lecionar teologia em nome da Igreja. "Acredito que o importante para um teólogo é expressar as preocupações e esperanças atuais do povo à luz do Evangelho. Assim ele também será levado a sério em Roma", disse Hans Küng, numa entrevista à Deutsche Welle em meados dos anos 1970, quando o conflito parecia ter se acalmado.
Nascido em 1928, em Sursee, no cantão de Lucerna, ele começou a questionar a doutrina da igreja depois de estudar em Roma. Ele duvidava que as antiquadas fórmulas de pregação católica ainda fossem assimiláveis pelo homem moderno.
Küng argumentava que os ensinamentos da Igreja deveriam ser formulados de maneira irrefutável, mas numa linguagem adequada a cada época. Ele criticou o dogma da infalibilidade do Papa, aprovado sob circunstâncias peculiares, no Concílio Vaticano 1º, em 1871.
Leonardo Boff, outra vítima
Já em 1957, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, sucessora da Inquisição, havia elaborado um Dossiê Küng, para analisar posições duvidosas de sua teologia. Apesar disso, o Papa João 23 convocou o teólogo (professor da Universidade de Tübingen a partir de 1960) para ser consultor oficial durante o Concílio Vaticano 2º, que pretendia modernizar a igreja. Logo após a conclusão do Concílio pelo Papa Paulo 6º, a Sagrada Congregação retomou o dossiê, abriu secretamente um processo para cassar a cátedra de Küng e tentou impedir a publicação de seus livros.
Küng queria, ao menos, que o processo fosse justo. Reivindicava o direito de ver os documentos e à assistência jurídica. "Um processo que não respeite esses direitos básicos é contra o Evangelho", disse. O teólogo, porém, não teve possibilidade de se defender em Roma e, pouco antes do Natal de 1979, o Vaticano lhe cassou, unilateralmente, a licença de lecionar.
Cinco anos depois, no dia 3 de setembro de 1984, o teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos teóricos da Teologia da Libertação, receberia punição semelhante por criticar a estrutura da igreja no livro Igreja, Carisma e Poder.
Pela lei alemã, Küng não podia ser demitido como professor e foi transferido para a cadeira de Teologia Ecumênica na Universidade de Tübingen. Longe de ficar reduzido ao silêncio, prosseguiu sua tarefa esclarecedora, empreendendo dois grandes projetos: tratar da situação religiosa e de uma ética global.
Globalização requer ética mundial
Küng realizou estudos sobre as tradições cristã, judaica, islâmica, hinduísta e budista e publicou obras sobre a questão da ética mundial ("Weltethos"). "A globalização requer uma ética mundial que supere as linhas de conflito entre nações, povos e religiões. Se a globalização for apenas um instrumento para a maximização dos lucros, preparem-se para uma séria crise social", advertiu no Fórum Econômico Mundial de 1997, em Davos, na Suíça.
No livro Uma ética global para a política e economia mundiais (Editora Vozes, Petrópolis, 1998), Küng afirma que "uma nova ética mundial passa pela paz religiosa, sem a qual não haverá paz mundial, e esta exigirá interpretações mais humanas de leis sacras ultrapassadas e anti-humanistas, fundadas na intolerância e na mentira".
Outro livro de sua autoria foi Os grandes pensadores do cristianismo – Paulo de Tarso, Orígenes, Agostinho, Tomás de Aquino, Martinho Lutero, Friedrich Schleiermacher, Karl Barth, lançado em português pela Editorial Presença, de Lisboa, em 1999.