Outono Alemão
4 de outubro de 2007Trinta anos após o chamado Outono Alemão – período entre setembro e outubro de 1977 em que as operações da Fração do Exército Vermelho (RAF) atingiram um radicalismo ímpar –, percebe-se que a inquietação em relação ao terrorismo de esquerda ainda não cessou.
Enquanto a esquerda já não provoca mais medo a ninguém, o terrorismo volta a povoar de temores o imaginário dos europeus. Mas talvez essa não seja a única razão de a atuação da RAF voltar a ser objeto de reflexão na Alemanha.
Efeito-dominó
Em outubro de 1977, a tentativa de libertar os terroristas da chamada primeira geração da RAF fracassa de forma trágica para todos os envolvidos. Nem com o seqüestro do líder empresarial Hanns Martin Schleyer, em 5 de setembro, os ativistas da RAF conseguem pressionar a libertação de seus líderes.
Para reforçar essa causa, a Frente Popular para Libertação da Palestina, solidária à RAF, seqüestra – em 13 de outubro – um avião de passageiros da Lufthansa decolado em Palma de Maiorca, com destino a Frankfurt.
Após o assassinato do piloto e uma odisséia por alguns países até a Somália, o avião Landshut é invadido por uma unidade antiterrorista da polícia alemã, em 18 de outubro. A ação policial culminou com o assassinato de três dos quatro seqüestradores e a libertação de 86 reféns.
Na madrugada desse mesmo dia, os líderes da RAF presos na penitenciária de Stuttgart Stammheim – Andreas Baader, Gudrun Ensslin, Jan-Carl Raspe – suicidam-se. Irmgard Möller sobrevive à tentativa de suicídio.
Reagindo à operação policial de resgate do Landshut, os seqüestradores da RAF assassinam o refém Hanns Martin Schleyer, encontrado morto no Oeste da Alemanha, em 19 de outubro de 1977.
O terrorista mora ao lado
O Outono Alemão designa, no entanto, algo mais que esse encadeamento de eventos, denotando também a intensificação das práticas de controle do Estado e a intensificação da presença policial no cotidiano da população. Esse aspecto, criticado pelos intelectuais e pelos líderes estudantis, dividiu a sociedade na época.
Quem criticasse a restrição das garantias civis em nome do combate ao terrorismo, por mais que fosse contra o uso da violência pelos ativistas de esquerda, podia facilmente cair na suspeita de simpatizar com os terroristas da RAF.
Desde então, o diálogo sobre o terrorismo de esquerda na Alemanha nunca deixou de polarizar opiniões. Talvez o aspecto mais assustador da RAF para a sociedade da época e de hoje seja o fato de os ativistas serem cidadãos "normais", de famílias de classe média alta, que de repente se mostraram dispostos a impor através da violência o modelo social com o qual sonhavam.
O perigo de um totalitarismo de esquerda na Alemanha se dissolveu inteiramente com o fim da Alemanha Oriental e com o descrédito da ditadura socialista, cujos crimes passaram a ser apurados após a reunificação do país. Diante da atual ameaça do terrorismo islâmico, no entanto, alguns fantasmas retornam.
Por um lado, os atentados islâmicos mais graves ocorridos recentemente na Europa foram cometidos por cidadãos europeus e não por extremistas de fora do continente, como muitos prefeririam acreditar. Por outro lado, a tendência de se criar um Estado de vigilância em nome do combate ao terrorismo volta a gerar grande controvérsia na Alemanha.
A polícia sabia do plano de suicídio?
Analogamente ao processo de elaboração de outros capítulos graves da sua história, como o nazismo e a ditadura socialista, também no caso da RAF os alemães apostam na investigação documental como forma confiável de reflexão sobre o passado.
Não é à toa que a revista Spiegel, conhecida por seus furos de reportagem e pela construção de escândalos, tentou resgatar – 30 anos após o Outono Alemão – uma das últimas lacunas na reconstrução da memória da RAF: a suspeita de que as conversas nas quais os prisioneiros de Stammheim combinaram o suicídio coletivo tenham sido escutadas pela polícia e, conseqüentemente, a suspeita de negligência das autoridades, que teriam se eximido de impedir a morte voluntária dos ativistas presos.
Novas informações adquiridas pela revista tornam mais prováveis essas suspeitas, embora não haja provas. O investigador que dirigia, em 1977, o serviço secreto do Departamento Estadual de Investigações de Baden-Württemberg, Hans Kollischon, confirmou pela primeira vez a operação de escuta nas celas de Stammheim: "Seria idiota não apelar a tais procedimentos para salvar a vida de Schleyer. Tudo o que se podia fazer foi feito."
Quanto a uma anotação descoberta na agenda policial correspondente ao dia do suicídio – "medida especial" –, Kollischon declarou: "Só havia uma medida especial em Stammheim, e era a operação de escuta".
Além disso, a revista divulgou um documento no qual o então presidente do Departamento Federal de Investigações, Horst Herold, propõe "uma operação policial preventiva de escuta de conversas entre os prisioneiros da RAF". As revelações não chegaram a causar grande impacto, mesmo porque realmente não se trata de provas definitivas.
Stuttgart Stammheim, Estação Terminal
A documentação também parece ser o ponto de partida do projeto teatral Estação Terminal Stammheim, recém-lançado pelo Schauspiel Stuttgart, cidade onde estão enterrados os terroristas suicidas.
Em 1977, o teatro municipal de Stuttgart era chefiado pelo diretor Claus Peymann, conhecido por encenar autores de grande irreverência na época. Mas um escândalo ligado à RAF não tardaria a lhe custar o cargo. A história, anedótica até, é ponto de partida de uma peça do coletivo teatral Rimini Protokoll, recém-estreada em Stuttgart.
Peymann afixou no mural do teatro um apelo no qual a mãe de Gudrun Ensslin pedia ajuda financeira para o tratamento dentário de sua filha presa. O jovem diretor Peymann, que contribuíra, ele mesmo, com 100 marcos para a campanha, recebeu logo em seguida centenas de cartas com agressões e ameaças de morte e, algum tempo depois, sua demissão.
O Amor é mais Frio que o Capital é o título da peça que René Pollesch concebeu para o projeto Estação Terminal Stammheim. O diretor e dramaturgo alemão partiu de uma cena do filme Noite de Estréia (Opening Night, 1977), de John Cassavetes, na qual a atriz principal se recusa a ser estapeada, conforme consta do roteiro. Embora não toque diretamente na questão da RAF, Pollesch questiona em sua peça a autenticidade e encenação da revolta.
Lente de aumento da mídia e da arte
E de fato, a repercussão da onda de terrorismo da década de 70 na Alemanha talvez não tivesse atingido a dimensão que atingiu, se a mídia não tivesse contribuído tanto para enfatizar o grau de periculosidade dos terroristas. Há quem acredite que a radicalização das operações da Fração do Exército Vermelho também se deveu ao fato de os ativistas não quererem ficar aquém de sua própria imagem, que se ampliava após cada novo ato de terror.
"Uma grande contribuição para a tragédia dos anos 70 foi prestada pela mídia", opina Hasko Weber, diretor do Schauspiel Stuttgart e mentor da programação de duas semanas sobre a RAF. "Sem o enorme volume de reportagens públicas, que muitas vezes chegavam a fornecer indícios, o medo não teria atingido tal dimensão. Crimes se tornam sensação, e não foi possível dar um passo para trás", declarou o diretor de teatro à imprensa alemã.
E de fato, ao lado do fato histórico da Fração do Exército Vermelho, a RAF chegou a atingir o status de um ícone pop, o que não deixa de ser controverso até hoje. O último grande debate público sobre esse assunto foi desencadeado por uma exposição realizada pela galeria Kunst-Werke, em Berlim, no início de 2005. Na época, a mostra sobre a representação do terrorismo da RAF na arte foi questionada por não comentar criticamente a aura que o movimento terrorista adquire ao se tornar referência de obras de arte.
Objeto para as artes
Ninguém na Alemanha considera legítima a atuação de um movimento armado que fez diversas vítimas entre a população civil, em nome de uma meta extremista. Matar para impor e manter um sistema político totalitário: disso os alemães já tiveram o suficiente no século passado.
Mas esse tabu parece não desfazer a aura de fascinação por um grupo de jovens dispostos a dar sua vida por uma meta comum – jovens inicialmente "normais", como milhares de outros que tinham os mesmos ideais, mas tomaram rumos diferentes.
Talvez seja essa mistura de repulsa e fascinação que torne a RAF, após a apuração de praticamente todos os detalhes históricos de sua trajetória, um objeto interessante para as artes, capazes de abordar – mais do que a mídia e a historiografia – as ambigüidades de um fenômeno social que continua a intrigar a todos.