A brasileira que sobreviveu à "Noite dos Cristais"
23 de novembro de 2020Aos 88 anos, Margot Bina Rotstein acha importante dialogar com os jovens para que o horror que presenciou jamais se repita. Nascida em Berlim, Rotstein fugiu da Alemanha com os pais aos seis anos de idade após a família ter sobrevivido à Noite dos Cristais, como ficou conhecido o episódio em que o regime nazista matou judeus, incendiou sinagogas, saqueou e destruiu lojas da comunidade judaica na noite de 9 para 10 de novembro de 1938.
Após ser barrada pelo governo de Getúlio Vargas em 1939, a família de Rotstein mudou-se para o Brasil em 1947, oito anos depois de ter chegado à América do Sul e se instalado na Bolívia.
Naturalizada brasileira, Rotstein se casou e teve filhos em São Paulo, onde tem passado a quarentena durante a pandemia.
Apesar da dor, ela não se importa de falar sobre o passado. A última vez que relembrou suas vivências na Alemanha nazista foi num evento virtual para alunos do Colégio Humboldt, há poucos dias. Muitos estudantes perguntaram se Rotstein tinha medo de que algo como a perseguição a judeus, portadores de deficiências, ciganos, homossexuais, comunistas, artistas e escritores que se opunham ao regime nazista se repetisse na atualidade.
Em entrevista à DW Brasil, ela afirmou: "Meu apelo, principalmente aos jovens, é que as futuras gerações se comprometam para que essa página jamais seja esquecida e que ela nunca mais se repita contra qualquer povo, raça, religião, gênero, ou deficiência. Enfim, contra qualquer ser na face da Terra."
DW: Mais de 80 anos depois da "Noite dos Cristais", as lembranças que a senhora tem daquele episódio seguem vívidas?
Margot Bina Rotstein: Sim… Hitler subiu ao poder em 1933, ano depois do meu nascimento. Quando ele chegou ao poder, já começaram as ondas de antissemitismo que, aos poucos, foram se acentuando. No Kindergarten que eu estudava já tinha bullying, o antissemitismo por parte dos pais que foi transmitido para as crianças.
Os judeus já sabiam que alguma coisa iria acontecer porque Hitler estava no poder, mas nem pensaram que seriam tantas coisas trágicas. Muitas famílias já se programavam para deixar o país, outras nem pensavam nisso, como os meus pais. Nós éramos uma família de classe média morando muito bem, em Berlim. Meu pai tinha uma loja de roupas e meus pais decidiram que só teriam um filho porque não sabiam o que iria acontecer.
A Noite dos Cristais [de 9 para 10 de novembro de 1938] foi muito triste, muito trágica. A gente viu da janela do nosso apartamento as labaredas, os estrondos… Quebraram muitas sinagogas, colégios judaicos, lojas de judeus, queimaram livros religiosos, sagrados… Aquilo foi uma tristeza só.
Mesmo criança, a senhora já sentia esse antissemitismo crescente em Berlim?
Um pouco antes da Noite dos Cristais, aconteceu algo. Eu me lembro que estava indo para a escola com meu pai, ele segurava na minha mão, e chegamos lá e tinha uma planta escrita "Juden verboten" (Proibido judeus).
Eu tinha seis anos. Sabe que, com 10, 12 anos, eu não me lembro de tantas coisas que aconteceram, não tão nitidamente. Mas tudo isso na Alemanha ficou tão gravado, uma coisa tão trágica, que ficou marcada na memória. Eu vou falando com você e vou vendo as cenas…
Por quanto tempo vocês conseguiram se esconder na Alemanha?
Meu pai era polonês. Os nazistas determinavam um dia para perseguir cada nacionalidade: poloneses, austríacos, apátridas… cada dia da semana era uma.
Minha mãe tinha uma amiga mais velha que chegou uma noite para ela e disse: "Elza, manda embora o seu marido porque o meu marido já foi [levado]". Imagine que ela perdeu o marido e ainda tentou salvar o marido da amiga!
Meu pai foi se vestindo às pressas, não conseguiu fazer nada direito, e minha mãe dizia para ele ir embora. Ele desceu, e na entrada do prédio ele cruzou com a Gestapo [polícia secreta nazista]. Mas a Gestapo não sabia como o meu pai era, só tinha o nome dele.
Os agentes subiram no apartamento e perguntaram para minha mãe onde estava meu pai. Minha mãe disse: "Olha, eu não sei. Tem noites inteiras que ele não aparece em casa, não sei o que está acontecendo." Eles foram embora e não fizeram nada com a gente.
Meu pai se escondeu na casa da minha tia, irmã da minha mãe, que era apátrida. No dia seguinte, a Gestapo voltou em casa, revirou tudo: armários, malas, colchão, tudo o que você pode imaginar. Eles foram embora e disseram que voltariam.
Enquanto isso, meu pai conseguiu um visto com a ajuda da Joint [instituição de assistência judaica]. Os nazistas nos tiraram o dinheiro, e a Joint ajudava os judeus a fugirem.
Como foi a fuga da Alemanha nazista?
Era 1939, logo depois da Noite dos Cristais. Eu me lembro que nós chegamos à estação de trem, e pegaram toda a nossa bagagem. Eu tinha uma bonequinha, eu me lembro perfeitamente… Ficou tudo preso, não podíamos levar absolutamente nada. Embarcamos com a roupa do corpo e com os trocados que meu pai tinha.
Fomos para Marselha, na França, onde um navio chamado Columbus iria nos levar para algum destino, nem sabíamos para onde. No meio da viagem, a Gestapo parou o trem e mandou todos os homens descerem. As mulheres e crianças ficaram dentro do trem.
Depois de certo tempo, a Gestapo mandou o trem seguir viagem sem os homens. Mas uns soldados franceses conseguiram jogar alguns desses homens de volta ao trem. E nessa, meu pai foi salvo, e nós seguimos juntos para Marselha. Imagine que muitas mulheres foram no trem com as crianças, sozinhas. Foi um drama total, muito choro…
O navio acabou vindo direto para o Brasil, que proibiu vocês de entrarem?
Sim, o governo de Getúlio Vargas proibiu a gente de entrar. Então fomos para a Bolívia, pois meu pai também tinha um visto. Fomos de trem, pelo Chile, numa viagem muito longa… A Bolívia foi o único país que nos deixou entrar. O Paraguai também havia fechado as portas, como o Brasil.
Bolívia era um país paupérrimo, mas eles foram excepcionais. Lá a gente encontrou muitas pessoas que tinham viajado com a gente no navio e fizemos muita amizade.
Quando tentaram se mudar para o Brasil novamente?
Em 1947, depois que a Segunda Guerra acabou. Meu pai sofria do coração e não podia ficar a mais de 3 mil metros de altitude, como era em La Paz. Ele optou pelo Brasil.
Dessa vez foi mais fácil. Meu pai deu entrada no visto já como capitalista [investidor]. Ainda era a época do Vargas, mas já não era uma ditadura.
Fomos direito para São Paulo, e meu pai abriu um comércio. Todo mundo se naturalizou como brasileiro.
Ao longo dos anos, como foi a sua relação com a Alemanha?
A gente não teve muita relação. Mas em 1994 a prefeitura de Berlim convidou berlinenses sobreviventes do Holocausto para fazer um passeio pela cidade. Eles pagaram tudo. Foi muito legal. Fomos recebidos de braços abertos. Foi a única vez que eu fui à Alemanha, não tive outras oportunidades.
Minha mãe foi antes, quando o Muro de Berlim ainda existia. Ela queria visitar o cemitério judaico, mas ele ficava do lado oriental. Ela foi, conseguiu entrar, visitou o túmulo do meu avô.
Como a senhora enxerga a Alemanha de hoje?
Acho que os judeus tiveram um grande sofrimento na Alemanha. Foi algo difícil até de entender. Mas eles [alemães] quiseram se retratar. Fizeram o Museu do Holocausto, um lugar muito impressionante que minha filha já visitou.
Em geral, acho que eles fizeram o possível para se redimir.
Olhando para o Brasil, para a vida que a família da senhora refez, a senhora considera que o país foi um bom lugar para vocês?
Depois que fomos barrados, na segunda vez que a gente veio para o Brasil, foi um país acolhedor, foi bom para os judeus. Tivemos uma vida tranquila. Embora a gente sentisse muita tristeza por causa da guerra.
Eu me casei com um brasileiro, filho de imigrantes poloneses, em 1954, e tenho três filhos brasileiros. Tivemos um casamento especial. Meu pai viveu até 1976, e minha mãe faleceu em 1981.
Atualmente, em vários pontos do globo nota-se um crescimento da extrema direita, do radicalismo, da intolerância. Como a senhora olha para esse cenário hoje?
Eu percebo uma volta do antissemitismo muito acentuada na Europa. Infelizmente. É impressionante que isso se acentue tanto.
E como a senhora olha para o Brasil hoje nesse cenário de radicalismo?
O Brasil é um país como qualquer outro, tem uns de direita, outros de esquerda… Vejo como uma coisa normal, dentro da normalidade.
A senhora acompanha o cenário político no Brasil e na Europa?
Eu não gosto de falar sobre política.
A senhora perdeu muitos familiares em campos de concentração?
Meu pai perdeu toda a família. Só uma irmã se salvou, que meu pai trouxe para o Brasil. Ela soube que a gente estava na Bolívia e mandou uma carta para um clube que a gente frequentava. Foi uma alegria tremenda quando a gente soube. Meu pai teve oito irmãos, todos faleceram em campos de concentração.
Minha mãe só tinha um irmão, que já morava no Brasil. Uma outra parte da família fugiu para Xangai, na China.
A senhora sempre falou sobre as lembranças da Alemanha nazista? Como a senhora lidou com essas experiências?
Eu sempre falei. E falo sobre o assunto quando me pedem. Em casa, meus filhos sabiam que eu tinha vivido a Noite dos Cristais. As pessoas à minha volta sabiam e me convidavam para falar sobre, e eu aceitava.
O Holocausto é um episódio muito triste da nossa história. Meu apelo, minha mensagem, principalmente aos jovens, é que as futuras gerações se comprometam para que essa página jamais seja esquecida e que ela nunca mais se repita contra qualquer povo, raça, religião, gênero, ou deficiência. Enfim, contra qualquer ser na face da Terra.
Isso é o que eu gostaria de pregar sempre. E tem uma coisa: tem muitas pessoas que dizem que o Holocausto é uma farsa, que não existiu. Não sei onde está a cabeça dessas pessoas, se em outro mundo…Não entendo o que acontece com elas.
Por isso, quando me convidam para falar eu falo, para não deixar que tudo isso seja esquecido.