Exposição
5 de abril de 2007Em certas culturas indígenas da Amazônia, a característica humana não é associada estritamente ao homo sapiens, por assim dizer. Humanos são considerados todos os seres que não se devoram entre si, mas podem comer juntos uma outra espécie – uma definição ligada à relação predador/presa e à cadeia alimentar.
Os atributos de certas aves que vivem em sociedade pode ser usados em rituais que visam a fortalecer os laços dentro de uma tribo. Por outro lado, se houver uma relação de concorrência ou guerra com uma outra tribo, processos como a "jaguarização" permitem – numa metamorfose ritualística – converter a relação humana em relação predatória. A doença e a morte são atribuídas à ação de um predador invisível, a ser neutralizada com rituais que dissimulem a presa ou convençam o predador de que a vítima é um dos seus, portanto, "humana".
Emancipação do continente feminino
A exposição Qu'est ce qu'un corps?, no Musée du Quai Branly, em Paris, contrapõe a noção ocidental de corpo a três outras visões etnológicas destiladas de culturas da Amazônia, da Nova Guiné e da África Ocidental.
Nas civilizações da Nova Guiné, o corpo se torna um elemento cultural significativo na distinção entre feminino e masculino, vista como uma relação entre continente e conteúdo. O corpo feminino é considerado estável em sua função de conceber e nutrir, o que se reflete num importante objeto ligado à feminilidade: a cesta trançada pelas mulheres para carregar os filhos e os alimentos.
O corpo masculino, por sua vez, é considerado instável, pois – para se tornar um corpo social e garantir a prosperidade do clã – tem que se libertar do invólucro feminino. Daí a necessidade de os homens passarem por rituais que perfaçam uma transformação de conteúdo em continente. Objetos com formas fálicas que se fecham em círculos concretizam esta conversão ritualística. Esta também é a motivação de rituais homossexuais, realizados como forma de emancipação da feminilidade.
Duplo dos antepassados
Já em certas culturas da África Ocidental, o corpo é definido em relação à sua interdependência com os ancestrais mortos. Daí a relevância das estatuetas que simbolizam os antepassados com atributos que insinuam a prosperidade do clã, funcionando como duplos.
Morte e nascimento são vistos como passagem para/de uma esfera não corpórea, a ser marcada com objetos funerários que se distinguem por um caráter amorfo, ou através de rituais de resgate do recém-nascido para o mundo das formas, com o enterro da placenta, por exemplo.
Na parte dedicada à África, a exposição mostra não apenas objetos cotidianos e ritualísticos que demonstram esta concepção de corpo, mas também fotos do período colonial, que codificam de uma perspectiva européia – mais visual e menos simbólica – os atributos representativos da família e do clã.
Corpo à imagem e semelhança
Em meio a visões antropológicas tão distintas do corpo, a parte dedicada ao Ocidente europeu – fundada na noção cristã da encarnação – permite refletir sobre a relatividade das nossas próprias premissas culturais.
A idéia de que o Ocidente encara o corpo como imagem – seguindo a noção judaico-cristã de que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus – é veiculada numa série de monitores que alternam em alta velocidade as representações humanas nas culturas ocidentais.
Mesmo em sociedades dessacralizadas e profanizadas como as nossas, a definição do corpo humano em relação a um princípio gerador – seja ele Deus ou o código genético – parece ser uma constante antropológica. Daí a importância da questão da representação, da relação entre modelo e imagem, nas culturas ocidentais.
A exposição Qu'est ce qu'un corps?, sob curadoria de Stéphane Breton, revela ainda grande influência do estruturalismo de Claude Lévi-Strauss sobre a etnologia contemporânea. A ênfase à percepção sensorial na forma de expor as peças faz jus à concepção interativa do Musée du Quai Branly, que – devido ao excesso de estímulos visuais – não deixa de dificultar a compreensão do contexto de onde provêm os objetos.