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ReligiãoBrasil

"A Campanha da Fraternidade põe o dedo na ferida"

10 de fevereiro de 2021

Ao condenar a violência contra LGBTs, texto-base da campanha deste ano despertou a ira de católicos conservadores. À DW Brasil, padre diz que polarização gerada pelo governo Bolsonaro impulsionou escolha do tema.

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Bandeira com as cores do arco-íris, símbolo do movimento LGBT, com a sombra e uma pessoa atrás
"Homicídios [de LGBTs] são efeitos do discurso de ódio e do fundamentalismo religioso", diz texto-base da campanhaFoto: Reuters/G. Garanich

A defesa explícita e inédita da população LGBT provocou a ira de conservadores brasileiros contra os organizadores da Campanha da Fraternidade, projeto realizado anualmente desde a década de 1960 pela Igreja Católica no Brasil.

O texto-base deste ano, cujo tema reforça a importância do diálogo frente à polarização, ainda ressalta que mulheres, especialmente as negras e as indígenas, são as maiores vítimas do "sistema de violência" no Brasil, e enaltece a importância das políticas de defesa dos direitos humanos.

"Uma das falsas notícias que fortalece a violência é a retórica de que direitos humanos servem apenas para defender 'bandidos'. Esse discurso fragiliza cada vez mais os instrumentos institucionais que contribuem para a justiça", diz o documento.

O mais polêmico parágrafo é o que afirma que "outro grupo social que sofre as consequências da política estruturada e da criação de inimigos é a população LGBTQI+".

Citando a última edição do Atlas da Violência, o documento observa que, em 2018, foram registrados 1.685 casos de violência contra essa população no país. "Segundo dados do Grupo Gay da Bahia […], 420 pessoas LGBTQI+ foram assassinadas [no mesmo ano], destas, 164 eram trans", acrescenta.

"Esses homicídios são efeitos do discurso de ódio, do fundamentalismo religioso, de vozes contra o reconhecimento dos direitos das populações LGBTQI+ e de outros grupos perseguidos e vulneráveis", enfatiza o documento. Diante disso, a Campanha da Fraternidade passou a ser alvo de campanhas de desinformação nas redes sociais.

Abordar temas espinhosos não é novidade do projeto – que tem como premissa mobilizar comunidades de base e paróquias em todo o Brasil para debater um assunto ao longo do período da quaresma, ou seja, entre o carnaval e a Páscoa. Já foram colocados como tema os encarcerados (em 1997), a discriminação racial (1988), o tráfico humano (2014) e o desemprego (1999).

A partir do século 21, a cada cinco anos a campanha é realizada de forma ecumênica. É quando a escolha do assunto não recai somente sobre um colegiado da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mas sim a membros do Conselho Nacional das Igrejas Cristãos do Brasil (Conic) – também integrado pelos católicos.

O tema foi definido "sobretudo pelo que ocorreu no Brasil depois do surgimento do governo Bolsonaro, quando a sociedade ficou muito dividida", afirmou à DW Brasil o padre Antonio Carlos Frizzo, assessor eclesiástico da Pastoral de Fé e Política e um dos secretários da CNBB responsáveis pela campanha.

DW Brasil: A Campanha da Fraternidade deste ano ainda não começou, mas um tema já está presente, sobretudo nas redes sociais: o fato de o texto-base abordar os direitos da comunidade LGBT. Como o senhor avalia essa repercussão?

Antonio Carlos Frizzo: Recentemente surgiu uma forte onda negacionista no Brasil. Negam que a vacina protege, dizem que a política é coisa suja, que a esquerda é comunista. E essa onda também é aproveitada por católicos ligados ao governo Bolsonaro, que usam robôs para divulgar nas redes sociais mentiras, para confundir e dividir a opinião da comunidade católica.

O texto-base cita, sim, o movimento LGBTQI+ como vítima da intolerância. O Brasil é um dos países que mais matam pessoas transexuais. Vem aumentando o número de feminicídio e também o número de [casos de] violência institucional, militar e civil contra os negros. Por isso o texto-base usa, sim, dados para marcar e apontar a violência que se volta contra as pessoas que são homossexuais, transexuais etc., e também contra as pessoas que são ligadas a movimentos dos direitos humanos. O Brasil é uma sociedade tremendamente violenta. Não é mais cordial. Predomina a intolerância.

Considerando a polarização da sociedade, as críticas já eram esperadas?

A Campanha da Fraternidade é um patrimônio do povo brasileiro, seja organizada pela CNBB, seja feita de modo ecumênico, como a deste ano. E ela desperta [o debate] justamente porque toca o problema. Põe o dedo na ferida. Precisamos superar a violência pela força do diálogo e com a dimensão cristã dialogando. Contra todo tipo de violência: contra os negros, as mulheres, os LGBTs e, sobretudo, a violência contra a natureza. E [precisamos] fazer do diálogo uma força para aumentar nossa participação no universo da política.

Nesse cenário, na política, está a força para criar leis que garantam políticas públicas voltadas para os pobres, contra a pobreza, e pela preservação da natureza. Nós vamos, sim, responder a esses críticos. Não vamos deixar passar. São pessoas mentirosas, que usam as redes sociais [para propagar desinformação].

E, no Brasil, desde a ascensão do Bolsonaro, as fake news, as mentiras que parecem verdade, pululam nas redes sociais. Desta vez é um grupo chamado [Centro] Dom Bosco*, que não tem nada de Dom Bosco*, que fez um vídeo falando mal da campanha, de maneira muito mentirosa e violenta.

*O Centro Dom Bosco é uma organização católica sediada no Rio de Janeiro, conhecida por posturas ultraconservadoras. Já Dom Bosco foi um sacerdote italiano que viveu entre 1815 e 1888, reconhecido como santo em 1934 e considerado pela Igreja como "pai e mestre da juventude".

Como foi escolhido o tema deste ano?

O tema é "Fraternidade e diálogo: compromisso de amor" e o lema é "Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma unidade". O Conic se encontrou e definiu o tema "diálogo", sobretudo pelo que ocorreu no Brasil depois do surgimento do governo Bolsonaro, quando a sociedade ficou muito dividida. Lulistas e bolsonaristas, esquerda e direita… E uma forte onda negacionista dizendo que não existe pobre, que foram as esquerdas que levaram o país à ruína… Ficou muito dividida a sociedade. E a Igreja também. Este tema é para tentar buscar superar essa divisão por meio do diálogo. Assim como acontece com os efésios [conforme o livro bíblico Epístola aos Efésios], quando os judeus puderam dialogar com os pagãos, e os pagãos com os judeus. Não é fácil, porque há um crescimento enorme da pobreza no Brasil e um governo tremendamente de extrema direita.

A Campanha da Fraternidade não se furta a debater grandes temas de interesse da sociedade. Como trazê-los de forma simples sem perder a profundidade?

Os temas são fáceis de serem abordados porque as comunidades já estão acostumadas a relacionar a bíblia com a vida e a vida com a bíblia. Não há tema impossível de ser refletido. Os subsídios são feitos sempre segundo o método ver, julgar, agir e celebrar. Tornam-se, assim, muito atraentes. É simples e prazeroso. As comunidades já estão acostumadas a se reunir em torno de um tema.

Em tempos de pandemia, há alguma orientação especial para os tradicionais encontros da campanha que costumam ocorrer nas casas das pessoas participantes ao longo da quaresma?

Com quase um ano de pandemia, os grupos já estão habituados a fazer seus encontros pelo Google Meet, pelo Zoom. Todo mundo entra no link no horário combinado e se faz a reunião. Ou então, que sejam [realizadas] nos quintais das casas, todos de máscaras, e em grupos de [no máximo] quatro ou cinco pessoas.