A dupla moral europeia na questão dos agrotóxicos
15 de abril de 2021"É cínico e absurdo: a União Europeia exporta pesticidas proibidos na UE para o Brasil e outros países. É como se essas pessoas valessem menos que os europeus, fossem gente de segunda classe", diz Larissa Mies Bombardi, professora de geografia da Universidade de São Paulo. Especialista em agrotóxicos e suas consequências no Brasil, ela publicou extenso estudo sobre o assunto.
No Brasil, são registradas, em média, cerca de 15 intoxicações agudas diárias por agrotóxicos. Segundo estimativas do Ministério da Saúde, entretanto, o número real é cerca de 50 vezes maior, já que a maioria das intoxicações não é notificada. "Mas isso é apenas a ponta do iceberg, também são provocadas inúmeras doenças crônicas", ressalta Bombardi.
Nas regiões onde o uso de pesticida é mais disseminado, há mais registros de câncer, algo até já encontrado em fetos ainda no útero. Também nessas áreas há mais malformações de fetos, puberdade prematura e formação de pelos pubianos e seios em crianças pequenas.
A população brasileira vem sendo protegida contra agrotóxicos de forma inadequada. "Cerca de um terço dos agrotóxicos permitidos no Brasil são proibidos na UE", enfatiza Bombardi. Um exemplo disso é o herbicida atrazina, do fabricante suíço Syngenta, muito utilizado no Brasil e proibido na Alemanha desde 1991 e na União Europeia desde 2004.
Outro exemplo de proteção inadequada são os resíduos de pesticidas permitidos. "Na soja, a UE permite até 0,05 miligrama de resíduos de glifosato por quilo. No Brasil, são permitidos 10 miligramas por quilo, o que corresponde a quantidade 200 vezes maior. O Brasil permite na água potável quantia resíduos de glifosato até 5 mil vezes maior que na Europa", explica Bombardi.
Duzentos mortos por ano
De acordo com um estudo recente, cerca de 385 milhões de intoxicações agudas por pesticidas são registradas em todo o mundo anualmente. "As consequências desse envenenamento agudo são vômitos, náuseas, erupções cutâneas, desmaios e danos neurológicos. Eles são agudos e desaparecem novamente", explica o toxicologista Peter Clausing e coautor do documento. O estudo não faz uma estimativa do número de casos não relatados. "As consequências de longo prazo do envenenamento também não são registradas no estudo", diz Clausing.
A grande maioria das intoxicações agudas, 90%, afeta principalmente pessoas que, de acordo com o relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU, vivem em países em desenvolvimento que possuem fracos regulamentos sanitários, de segurança e de meio ambiente, além de uma implementação menos rígida. Estima-se que o envenenamento agudo resulta em 200 mil mortes por ano.
"Trabalhadores sazonais que trabalham na colheita para o setor de agronegócio são tratados como produtos descartáveis. Nossos corpos são envenenados pelo uso de agrotóxicos", diz Alicia Muñoz, da Associação de Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas do Chile.
França e Suíça param exportações
Os especialistas em direitos humanos das Nações Unidas defendem que pesticidas não aprovados para uso em seus países de origem não devem ser exportados para outras nações.
A França foi o primeiro país do mundo a reagir e adotou uma proibição de exportação de tais produtos proibidos em solo francês. A partir de janeiro de 2022, os pesticidas não aprovados na UE não poderão mais ser produzidos e exportados pela França.
As empresas químicas europeias, incluindo os três maiores fabricantes europeus de pesticidas, Bayer, Basf e Syngenta, entraram com uma ação conjunta contra a medida. No entanto, o Tribunal Constitucional francês confirmou a legalidade dessas proibições de exportação em janeiro de 2020.
A Suíça foi o segundo país do mundo a impor uma proibição de exportação similar. Cinco pesticidas particularmente perigosos, incluindo a atrazina, frequentemente usada no Brasil, desde janeiro de 2021 são proibidos de serem produzidos e exportados pela Suíça.
O governo alemão ainda não quer aderir às proibições de exportação dos países vizinhos. Em nota enviada à DW, o Ministério da Agricultura alemão argumenta que isso dificilmente mudaria a disponibilidade de agrotóxicos nos países e, portanto, dificilmente teria qualquer efeito, já que "muitos princípios ativos também são produzidos no exterior", como na China e na Índia.
Os oposicionistas Partido Verde e a Esquerda veem o assunto de maneira diferente e apresentaram um projeto no Parlamento para a proibição da exportação de pesticidas sem aprovação na UE. Mas os partidos governistas CDU e SPD sinalizaram que não pretendem aprovar a proposta.
A quem pertence o futuro?
A venda de pesticidas é vital para o faturamento das empresas químicas. De acordo com pesquisa das organizações não governamentais suíças Public Eye e Greenpeace, as vendas globais de pesticidas totalizaram 57,6 bilhões de dólares (R$ 330 bilhões) em 2018.
A gigante química alemã Bayer anunciou ter faturado no ano passado 8,7 bilhões de euros (quase R$ 60 bilhões) com pesticidas. O fato de alguns pesticidas da Bayer também serem proibidos na UE não é motivo para o grupo interromper as vendas. A empresa diz que os produtos são seguros.
"Muitas outras autoridades de supervisão em todo o mundo também têm sistemas regulatórios sofisticados e muito confiáveis para proteger a saúde humana e o meio ambiente", disse o porta-voz da Bayer, Holger Elfes, à DW. Entre os países com tais sistemas regulatórios, a Bayer também inclui China, Turquia, África do Sul e Brasil.
O uso de glifosato também é altamente controverso. O pesticida mais usado no mundo é responsabilizado por câncer e deformidades, e nos Estados Unidos altas somas de indenização foram garantidas pela Justiça a pessoas afetadas. A utilização na UE deveria ser proibida a partir de 2018, mas agora permanecerá permitida até o final de 2023. É uma luta entre os interesses das empresas, a proteção da população e a preservação da biodiversidade.
A Comissão Europeia pretende agora, com sua estratégia para produtos químicos, reforçar significativamente a proteção da saúde e do meio ambiente. "Alguma coisa está se movendo. Estamos vivendo agora uma discussão pública que é muito mais forte do que há cinco anos e mais ainda em relação a dez anos atrás. Isso tem um impacto no meio político", diz o toxicologista Clausing, que também faz parte da coalizão de ONGs Pesticide Action Network (PAN).
A especialista em agrotóxicos Larissa Mies Bombardi também observa uma mudança. "O público no Brasil está cada vez mais atento a esses problemas. Há mais organizações lutando contra o uso de agrotóxicos, e o tema da agroecologia e da agricultura orgânica ganha cada vez mais importância."
Clausing e Bombardi enfatizam que a direção na qual a agricultura e a proteção da saúde estão se movendo ainda está aberta. O meio político, as leis e também os acordos comerciais internacionais determinam a direção. Mas o comportamento dos cidadãos também é muito importante e decisivo, segundo Bombardi. "Se as pessoas deixam de comprar produtos porque provocam doenças em adultos e crianças, isso também é um avanço. O dinheiro tem efeito, e as coisas mudam por causa da pressão econômica."