"A música dá espaço para os sentimentos mais quietos"
27 de março de 2017Embora um pouco inferiores aos de anos anteriores, os números do Festival Beethoven de Bonn 2017 são respeitáveis: 54 concertos em três semanas, em 22 locais de apresentação, 2 mil artistas, um orçamento total de 4,5 milhões de euros e 31 mil ingressos à venda.
Por outro lado, depois dos extrovertidos slogans das edições anteriores, "Mudanças" e "Revoluções" – que enfatizavam o artista rebelde e revolucionário –, o Beethovenfest deste ano vem com um tema intimista: "A amada distante".
A alusão é ao ciclo de lieder An die ferne Geliebte, composto por Ludwig van Beethoven (1770-1827) em 1816, após dois anos de crise. Para muitos musicólogos, a obra marca o início da terceira e última fase criativa do músico natural da cidade renana.
A DW entrevistou Nike Wagner, bisneta do compositor Richard Wagner e a diretora artística do Beethovenfest desde 2014. Ela fala da importância de proteger a esfera íntima e "escutar dentro de si", cultivando um gênero musical mais "quieto" como a canção de câmara, em tempos de política espalhafatosa e explosão midiática.
E apresenta parte do admirável elenco de cantores, instrumentistas, orquestras, regentes e outros artistas envolvidos nesta edição do festival do qual a Deutsche Welle é parceira de mídia, e cuja venda de ingressos se inicia em 27 de março.
DW: "A amada distante" evoca o amor longínquo e não consumado, evoca anseio. Isso é uma espécie de calma antes da tempestade? Pois se espera muito da senhora e de Bonn, no ano de jubileu beethoveniano 2020.
Nike Wagner: Esse slogan sem dúvida aponta para uma certa introversão. Talvez um ritardando, um "escutar dentro de si". Não se pode estar sempre no pique "barulhento", embora com Beethoven seja fácil entrar nele. Também há um outro Beethoven, o lírico, aquele que entende dos "sentimentos mais íntimos".
O ponto de partida para esse slogan foi o ciclo de lieder An die ferne Geliebte (À amada distante), de 1816, e sua carta à "amada imortal", alguns anos antes. Desde então, esses conceitos são parte de Beethoven. Seja como for, o tema abre um espaço muito generoso – sobretudo musicalmente – para histórias de amor em geral.
Beethoven não tinha em sua vida nada do que hoje em dia denominaríamos uma "relação bem-sucedida". Romances, talvez, mas o grande amor permaneceu inalcançável para ele. Soa como um clichê, mas: ele tinha que sublimar tudo em sua arte? É um jogo de "ou isto, ou aquilo", de soma-zero?
Pode-se especular longamente sobre isso. Mas dizer que uma vida amorosa frustrada seja a pré-condição para uma obra tão tremenda, me parece superficial demais. Crises amorosas e existenciais frequentemente vêm juntas, e para um artista há, além disso, as condições criativas. No entanto permanece um mistério como a dor de amor se transforma em criatividade artística. Não é assim tão simplesmente compensatório: a "amada distante" pode também bloquear, por estar tão longe. E nem todo o mundo que é infeliz no amor sai escrevendo grandes sinfonias.
Talvez um slogan como "A amada distante" surpreenda, hoje em dia. Parece que estamos afogados em política e barulho midiático. Mais um motivo, penso eu, para se proteger a esfera privada e se aferrar à nossas necessidades amorosas primárias e a todos aqueles sentimentos que na juventude eram tão prementes. Nas ciências culturais, fala-se atualmente de um "retorno dos sentimentos". Pelo menos seria bom se, com eles, também as artes mais "quietas" voltassem a ter campo. A arte do lied é uma delas.
O lied e o ciclo de lieder An die ferne Geliebte é, por assim dizer, o ponto de partida para sua programação desta temporada. Para onde o programa leva, a partir daí?
Com a Amada distante, pela primeira vez Beethoven montou uma série de versos num "ciclo". Essa forma então fez escola, sendo Franz Schubert, Robert Schumann e Hugo Wolf os exemplos mais belos. Vamos escutar Die Schöne Müllerin, de Schubert, o Italienisches Liederbuch, de Wolf, velhos madrigais e composições contemporâneas, as Liebeslieder-Walzer de Brahms [com acompanhamento de piano a quatro mãos], mas também canções orquestrais.
Começa com An die ferne Geliebte de Beethoven em versão para orquestra, mas aí vêm os sons vocais langorosos do romantismo francês: Les nuits d´été, de Hector Berlioz, e sua altamente teatral La mort de Cléopâtre. E, de Ernest Chausson, o ciclo Poème de l'amour et de la mer. Em cada grande concerto de orquestra, aparecem casais de amantes, por vezes Orfeu e Eurídice, por outras Romeu e Julieta – ou uma prostituta e seu mandarim.
Em termos radiofônicos, as enquetes mostram que a voz com treinamento clássico não cativa o grande público. É diferente com a plateia na sala de concertos?
A vox humana não falha nunca! Um recital de lieder ou canções orquestrais, afinal, não é rádio. Aqui, mil outros parâmetros entram em jogo: o carisma do cantor ou cantora, a forma totalmente diversa do público de "se deixar levar" pela palavra. São narradas verdadeiras histórias, histórias em miniatura, que a música faz penetrar sob a pele.
Em relação às dimensões do Festival Beethoven: agora há algumas apresentações a menos do que antes. Essa foi uma reação inevitável à logística? Pois a sala Beethovenhalle está sendo saneada, é preciso se apresentar no World Conference Center, onde há menos assentos. Ou o festival era simplesmente grande demais para a cidade de Bonn?
Desde 2014, há o desejo de muitos grêmios e muitos amantes da música de Bonn de abreviar um pouco o Beethovenfest. Eles dizem: "Nós perdemos o fôlego, o festival é longo demais!" Isso é curioso, mas talvez também compreensível, em relação ao tamanho da cidade. A partir de 2017 só nos apresentamos por três semanas. O que seguramente não significa que o programa não esteja recheado de eventos!
Que intérpretes não se deve perder, de jeito nenhum, nesta edição, que dicas a senhora tem para nós? A rigor, deveria recomendar tudo...
Sim, bem que eu gostaria! Os intérpretes de lieder são todos fantásticos. Abrindo, Matthias Goerne se apresenta, e no concerto de fechamento escutaremos Vesselina Kasarova com a Sinfônica de Bamberg. Ronald Brautigam é um mestre do hammerklavier [um antepassado do piano moderno]; o pianista Igor Levit já tem status de culto; e também não se pode perder o violoncelista Miklós Perényi e a violinista Isabelle Faust.
Maestros tão distintos como Valery Gergiev e Ingo Metzmacher são indispensáveis para um festival, da mesma forma que uma grande orquestra como a BBC Symphony, ou os interessantes Les Musiciens du Louvre, menores e com sonoridade histórica. O concerto orquestral mais animado é sempre o Campuskonzert, onde desta vez a Bundesjugendorchester se reúne com jovens músicos ucranianos.
E o nosso fim de semana dedicado aos quartetos de cordas não é só para os experts: bem-sucedidos quartetos jovens, como o Schumann e o Diotima, combinam as últimas obras de Beethoven com os primeiros compositores modernos.
Dois concertos vão se ocupar de modo especial com Ludwig van Beethoven: Vladimir Tarnopolsky compôs uma nova obra para acompanhar o Concerto para piano e orquestra nº 4; e o especialista Jan Caeyers fez a reconstituição de um programa de concerto puramente beethoveniano do ano 1803, incluindo o oratório Cristo no Monte das Oliveiras, raramente executado.
Que peso os eventos de dança terão neste ano?
O balé da Ópera de Lyon vem com a Grande fuga de Beethoven, interpretada pelas três das mais celebradas coreógrafas do nosso tempo: Anne Teresa De Keersmaeker, Maguy Marin e Lucinda Childs apresentam suas versões muito pessoais dessa obra alucinante.
Uma companhia da Normandia reúne seis dançarinos e seis percussionistas: o conjunto Percussions de Strasbourg executa Pléïades, de Iannis Xenakis. E a expressiva companhia nacional CoCoonDance Company tem a coragem abordar o Geistertrio de Beethoven. De todas as três noites, nós esperamos muito: é um retorno à dança ao som de música "composta"!