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A poliomielite pode voltar ao Brasil?

2 de maio de 2023

Primeiro caso da doença no Peru em três décadas deixa o Brasil em alerta. Cobertura vacinal contra a paralisia infantil caiu nos últimos anos, com centenas de milhares de crianças brasileiras não recebendo nenhuma dose.

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Criança recebe vacina de gotinha contra a poliomielite
Há pelo menos quatro anos, taxas de vacinação contra poliomielite no Brasil estão significativamente abaixo do recomendado pela OMSFoto: Jose Aldenir/Zumapress/picture alliance

Após permanecer mais de 30 anos livre da poliomielite, a América registrou um caso em março deste ano, no Peru, em uma criança indígena. Por se tratar de uma infecção grave e transmissível, a Organização Panamericana de Saúde (Opas) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) emitiram alertas de risco de reintrodução da doença no continente, com alto risco para a tríplice fronteira entre Peru, Colômbia e Brasil.

Em 1994, as Américas se tornaram a primeira região do mundo a ser certificada como livre da pólio pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Enquanto em todo o continente americano o último caso da doença havia sido registrado em 1991, o Brasil está livre da poliomielite desde 1989, graças a uma campanha robusta de imunização que manteve a cobertura vacinal de todo o país em níveis acima dos 95%, recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para impedir a circulação do vírus.

Porém, há pelo menos quatro anos, as taxas de vacinação no Brasil estão significativamente abaixo do recomendado. Segundo dados do Ministério da Saúde, a cobertura vacinal (porcentagem da população com o esquema vacinal completo) contra a doença nos últimos anos foi de:

  • 84,19% em 2019;
  • 76,79% em 2020;
  • 71,04% em 2021;
  • 77,12% em 2022.

As coberturas vacinais contra a poliomielite nos dois estados que fazem fronteira com o Peru estão abaixo da média nacional: no Acre, foi de 71,4% em 2022, e no Amazonas, de 76,9%. 

Diante da baixa cobertura, o pediatra Márcio Nehab, coordenador da residência médica em imunologia pediátrica do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), alerta que praticamente todo o Brasil corre o risco de reintrodução do vírus da pólio, e não somente a região de fronteira com o Peru.

"Todos os estados correm risco, menos Amapá e Paraíba, que já voltaram a recuperar altas coberturas vacinais em 2022, segundo dados do DataSUS. Fora esses dois estados, todos os outros estão com coberturas abaixo da recomendação da OMS para o controle da doença (95%)", explica Nehad.

Milhares de crianças em risco

Entre 2019 e 2021, 1,6 milhão de crianças no Brasil não tomaram nenhuma dose de vacina contra a pólio e 2 milhões ficaram sem as doses recomendas, segundo o relatório Situação Mundial da Infância 2023: Para cada criança, vacinação, do Unicef, lançado no último dia 20 de abril. O documento afirma que é urgente o governo brasileiro encontrar cada uma dessas crianças não imunizadas contra a doença.

"Uma busca ativa por essas crianças, olhando para municípios e estados com maiores números absolutos de não vacinadas e não imunizadas, é essencial, pois elas já ficaram para trás, e correm o risco de nunca serem imunizadas e protegidas", disse o representante do Unicef no Brasil, Youssouf Abdel-Jelil.

Dados do Ministério da Saúde de 2022 pedidos pela DW mostram que 412.836 crianças, ou 3,5% do público-alvo da Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite (de 11,5 milhões de crianças menores de cinco anos), não receberam nenhuma dose da vacina no ano passado.

O estado com a menor cobertura vacinal entre as crianças menores de 5 anos em 2022 foi justamente o Acre, que faz fronteira com o Peru, com apenas 39% de cobertura vacinal em menores de 5 anos. Na sequência, estão Rio de Janeiro (50,9%), Roraima (53,4%) e Distrito Federal (54,4%).

No Acre, 20.090 crianças estão com a vacinação incompleta, e 2.551 nunca foram vacinadas contra a pólio, de acordo com dados da Secretaria de Saúde do Acre (Sesacre).

A DW pediu à Secretaria de Saúde do Amazonas dados referentes às crianças que nunca foram imunizadas contra a doença, mas o órgão não retornou o pedido.

O sucesso do Zé Gotinha

Nehab alerta que, para estarem protegidas contra a pólio, crianças de até 5 anos devem ter completado o esquema vacinal composto por cinco doses: três da Vacina Inativada Poliomielite (VIP) – a primeira aos dois meses; a segunda aos 4 meses; e a última aos seis meses – e outras duas doses de reforço da Vacina Oral Poliomielite (VOP) – aos 15 meses e aos 4 anos de idade.

"Crianças que têm o calendário vacinal completo, de cinco doses, estão imunes a pólio. Quem não tem o esquema vacinal completo, deve tomar as doses que faltam", orienta o pediatra. 

A vacina oral VOP é a famosa vacina do Zé Gotinha, personagem criado em 1986 em uma campanha do Ministério da Saúde para erradicar a pólio no Brasil. E estratégia do Zé Gotinha deu tão certo que, em apenas três anos de campanha, o país conseguiu eliminar o vírus do país.

Porém, ao contrário da varíola, a poliomielite não foi erradicada no mundo. Por isso, o Unicef alerta que enquanto houver um infectado, crianças de todos os países que não completaram o esquema vacinal ou que nunca se imunizaram contra a doença correm o risco de contrair o vírus.

Situação vacinal na fronteira

Cidades do Acre e do Amazonas na região de fronteira com o Peru estão com a cobertura vacinal contra a poliomielite muito abaixo do recomendado de 95%.

Segundo dados da Secretaria de Saúde do Acre, a cobertura vacinal na população em geral em 2022 em Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima foi de apenas 63% e 58%, respectivamente. Na capital Rio Branco, a cobertura foi de 72,5%.

A situação é pior ainda na região de fronteira do Amazonas: em Benjamin Constant, a cobertura no ano passado contra a poliomielite na população em geral ficou em 37,8%; em Atalaia do Norte, em 53,5%; e em Tabatinga, em 60,5%, de acordo com dados da Secretaria de Saúde do Amazonas.

Na Colômbia, dados do Unicef de 2021 mostram que apenas 86% das crianças de até 2 anos foram imunizadas contra a pólio. No Peru, a cobertura vacinal para a mesma faixa etária foi de 79% naquele ano.

Devo me vacinar?

Também conhecida como paralisia infantil por poder paralisar os membros inferiores, a poliomielite é uma doença debilitante e contagiosa, infectando tanto crianças quanto adultos não imunizados. A infecção pelo poliovovírus se dá por meio do contato direto com fezes ou com secreções eliminadas pela boca das pessoas doentes. A única forma de prevenção é a vacinação.

Por isso, Nehab alerta que qualquer pessoa, independentemente da idade, que não tenha se imunizado contra a pólio deve se vacinar.

"Adultos que não têm o esquema vacinal completo contra a poliomielite devem tomar as doses que faltam. Quem não tomou nenhuma dose, deve tomar três doses", explica.

Os adultos que nunca tomaram uma dose da vacina devem seguir o seguinte esquema: duas doses com intervalo de um a dois meses; e uma terceira dose no intervalo de seis a 12 meses após a segunda.

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que recuperar as altas coberturas vacinais é prioridade da atual gestão.

"O Ministério da Saúde fortaleceu o Programa Nacional de Imunizações (PNI) e espera retomar as coberturas acima de 90%. Uma das principais estratégias será a mobilização em escolas para informar sobre a importância de atualizar a Caderneta de Vacinação. A ação é elaborada em conjunto com o Ministério da Educação, estados e municípios", escreveu a pasta.