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"Abortar não é discriminar deficientes", diz médico

Karina Gomes3 de fevereiro de 2016

Para o especialista em bioética Rui Nunes, interrupção da gravidez de fetos com microcefalia é um direito da mulher. "Uma sociedade civilizada deve ao menos discutir esse tema sem tabus."

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Foto: picture-alliance/dpa

O aumento de casos de microcefalia no Brasil gera debate intenso sobre a descriminalização do aborto. O grupo que defendeu no Supremo Tribunal Federal (STF) a possibilidade de interrupção da gravidez em casos de anencefalia pretende entrar com uma ação para garantir o mesmo direito às mães de fetos diagnosticados com a síndrome.

Para quem se opõe à ideia, o aborto de bebês microcéfalos é uma forma de eugenia – o aprimoramento de "qualidades físicas e morais de gerações futuras" – termo científico criado em 1883, mas até hoje associado à política de seleção social da Alemanha nazista.

Rui Nunes, professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, defende que a autonomia reprodutiva da mulher não está ligada ao eugenismo, mas ao direito de decidir sobre o futuro do feto com deficiência, com base na qualidade de vida que ele terá no futuro.

"Não tem que ver com nenhuma discriminação", argumenta o especialista em bioética. "Os países que permitem o aborto nesses casos são os que mais se preocupam com a inclusão de pessoas com deficiência na sociedade."

Segundo Nunes, o autor do livro Questões éticas do diagnóstico pré-natal da doença genética, há dois patamares de decisão: um de natureza clínica e outro de natureza ética ligado aos valores que a mãe ou casal defendem. "Não é por gostarem mais ou menos dos seus filhos. É sobretudo por uma preocupação em relação ao futuro dessas crianças."

Deutsche Welle: O diagnóstico de microcefalia justifica um aborto?

Rui Nunes: Por um lado, a vida intrauterina merece respeito e não pode ser cerceada sem uma causa devidamente justificada. Mas há situações em que a autonomia reprodutiva da mulher justifica a interrupção voluntária da gravidez. Além de casos de estupro e quando há risco à saúde da mãe, ela também vale para quando a qualidade de vida previsível do feto é tão afetada que cabe à mãe ou ao casal decidir. Essa evolução se deu na maioria dos países ocidentais há muitos anos e, portanto, creio que uma sociedade civilizada deve ao menos discutir abertamente esse tema sem nenhum tipo de tabu nem de reserva intelectual.

Aplica-se o termo eugenia nesse caso?

O termo "eugenia" é determinado culturalmente. Tecnicamente, deve se reservar o termo para as situações em que há uma intenção de melhorar o capital humano através de todas as ferramentas biológicas e genéticas de que a ciência hoje dispõe. Por exemplo, foi aprovada [esta segunda-feira] no Reino Unido a manipulação genética do embrião para melhorar suas características, como inteligência e memória, ou para selecioná-las, como o sexo, a cor dos olhos ou da pele. Isso é eugenia. Nos dias de hoje, não é muito correto dizer que o aborto de fetos com deficiência é um ato eugênico quando o que se pretende é garantir que quem nasce numa sociedade muito competitiva e materialista tenha as melhores condições possíveis, independentemente do fato de todos terem o direito à vida. Evidentemente, não é isso que está em causa.

Há vários níveis de comprometimento, como cognitivo e motor, do bebê com microcefalia. Entrevistei uma jornalista de 25 anos que tem a síndrome, mas não chegou a ter danos cerebrais. Como fica essa linha tênue de decisão entre abortar ou não quando os pais recebem esse diagnóstico?

Em primeiro lugar deve haver um diagnóstico médico e clínico suficientemente preciso. Depois há uma decisão que não é clínica, mas tem a ver com valoração que a mulher e o casal fazem da existência de um feto com essas características biológicas, se isso justifica ou não interromper a gravidez. Na Europa, por exemplo, há esse campo de manobra para as mulheres, no sentido de poderem exercer sua autonomia reprodutiva. Há casos como da jornalista que não teve a qualidade de vida afetada, e há outros em que os pacientes tem problemas maiores.

A decisão de não ter um bebê com microcefalia pode se traduzir num preconceito contra pessoas com deficiência?

O debate nos países ocidentais não tem a ver com nenhuma discriminação. Porque se analisarmos, e esse argumento é fortíssimo, os países que regularizaram a interrupção da gravidez nos casos de fetos portadores de deficiência são também os que mais apostaram nas políticas de inclusão e igualdade de oportunidades para os deficientes. Despenalizar o aborto nessas circunstâncias extremas não significa discriminar os deficientes, porque os que acabam por nascer por escolha dos pais são muito protegidos nesses países.

Portugal é um deles.

Exatamente. Tem-se feito um esforço tremendo de inclusão das pessoas portadoras de deficiência na sociedade e com custos substanciais para os contribuintes. Não há nessa discussão nenhum sinal pejorativo ou negativo em relação aos deficientes. Há simplesmente a possibilidade de os casais escolherem. Ponto. Todos os países que figuram nas primeiras posições no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, como os países escandinavos, a Austrália, a Nova Zelândia, o Canadá e os países europeus, analisam o problema da seguinte forma: por um lado, dar à mulher a possibilidade de fazer escolhas livres e informadas. Por outro, a partir do momento em que nasce alguém, portador ou não de deficiência, incluí-lo na sociedade.

Essa política mudou de forma significativa as estatísticas relacionadas ao aborto nesses países?

O número de casos de microcefalia em Portugal não é muito grande. Mas no caso da Trissomia 21 [Síndrome de Down], por exemplo, obviamente muitos casais optam por fazer isso, sobretudo por preocupação em relação ao futuro que uma criança ou um jovem com um problema desses vai ter amanhã numa sociedade tão competitiva como a nossa. São condicionantes que levam os pais a pensar. Temos tecnologia muito apurada nos nossos institutos de genética e me atrevo a dizer que, na maioria dos casos em que se faz o diagnóstico, os casais optam pelo aborto. E não é por gostarem mais ou menos dos seus filhos. É precisamente por acharem que com aquelas condições a possibilidade de terem uma qualidade de vida aceitável se reduz drasticamente.

Entidades que defendem a liberação do aborto em casos de microcefalia justificam a interrupção da gravidez, entre outros fatores, pelo fato de o governo brasileiro ter falhado no combate ao mosquito Aedes aegypti, que transmite o vírus zika. É possível estabelecer essa relação?

A relação poderia existir, é um argumento de natureza política bastante forte, mas nos seus fundamentos éticos é mais fraca. Eu não sei até que ponto o Estado tem condições de impedir uma epidemia dessa natureza, mas, mesmo que tivesse, creio que faz muito mais sentido argumentar como uma questão de direitos fundamentais, de direito à escolha, de direito à liberdade de reprodução, e menos por esse nexo causal. Senão amanhã essa epidemia passa, e voltamos à estaca zero. Vale a pena alicerçar esse debate no fato de que trata-se de um direito, sobretudo das famílias com menos recursos e que não vão conseguir dar uma boa qualidade de vida a essas crianças.