"Para acordo UE-Mercosul, desmatamento precisa cair"
1 de setembro de 2020Heiko Thoms, novo embaixador da Alemanha no Brasil, reuniu-se no último dia 19 de agosto com o presidente Jair Bolsonaro para entregar suas credenciais – formalidade que marca o início de seu trabalho em Brasília. Entregou ao presidente uma máscara facial com a bandeira dos dois países, e conversaram sobre o acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, que promete criar uma da maiores áreas de livre comércio do mundo, com 780 milhões de pessoas e um quarto da economia mundial.
O acordo foi assinado em setembro de 2019, após 20 anos de negociações, e apresentado como vitória do governo Bolsonaro para ampliar a inserção do Brasil no mundo, mas ainda depende de uma série de etapas para entrar em vigor. Além de reduzir ou acabar com as tarifas de importação e exportação entre os dois blocos, o texto também estabelece obrigações na área de sustentabilidade ambiental . O pacto vem enfrentando crescente resistência na União Europeia devido à alta do desmatamento na Amazônia e à falta de políticas consistentes do governo brasileiro para a proteção do meio ambiente.
A próxima fase do processo de aprovação do texto é a sua assinatura pelo Conselho da União Europeia, que reúne os chefes de Estado dos 27 países-membros do bloco. A Alemanha exerce até o final de 2020 a presidência desse órgão, e a gestão Bolsonaro tem esperança de que Berlim use sua posição para que o Conselho assine o acordo nesse período. Após a reunião com Thoms, Bolsonaro tuitou: "Reafirmamos nosso interesse de aprofundar a parceria econômica e de assinar o Acordo Mercosul-União Europeia."
No dia seguinte, porém, a ativista sueca Greta Thunberg, a quem Bolsonaro já chamou de "pirralha", reuniu-se com a chanceler alemã, Angela Merkel, em Berlim, acompanhada de outras jovens ativistas da defesa do meio ambiente. Ao sair do encontro, a alemã Luisa Neubauer, colega de Greta, afirmou que Merkel declarou a elas que "definitivamente" não assinaria o acordo UE-Mercosul. E o porta-voz de Merkel, Steffen Seibert, afirmou à imprensa que a chanceler tinha "sérias dúvidas" sobre a implementação do acordo devido ao aumento do desmatamento na Amazônia.
Em entrevista concedida à DW Brasil nesta segunda-feira (31/08), Thoms afirma que o acordo de livre comércio está no topo de sua agenda e que seu país ainda "tem a ambição" de assiná-lo no Conselho da UE até o final do ano, mas que "há muita sensibilidade em todo o espectro político alemão sobre temas relativos a clima e meio ambiente".
Ele diz que seu país gostaria de ver redução da área desmatada na Amazônia – "não promessas ou palavras, mas progresso real". "Não quero apresentar isso como uma pré-condição, mas uma redução nos números de desmatamento tem repercussão direta na percepção política na Alemanha", afirma.
Indagado sobre investimentos alemães no Brasil, Thoms sinaliza que não devem ocorrer grandes movimentos no curto prazo, já que a crise provocada pela pandemia "exigirá uma revisão de decisões empresariais que haviam sido tomadas”. Mas afirma que o Brasil, "uma das economias mais fechadas do G20", se beneficiaria de uma maior abertura.
No Brasil há pouco mais de um mês, ele elogia o clima seco e ensolarado do inverno da capital. Um dos seus postos anteriores foi na embaixada alemã em Teerã, que também tem períodos áridos. No tempo livre, tem feito passeios de bicicleta por Brasília, mas evita parar em locais com aglomerações.
DW Brasil: Quais são as suas prioridades como embaixador da Alemanha no Brasil?
Heiko Thoms: Há muito acontecendo entre os dois países: relações econômicas, cooperação governamental, assuntos culturais, parcerias sobre o meio ambiente. Mas é claro que o acordo entre a União Europeia e o Mercosul está no topo da agenda pelos próximos meses. E sustentabilidade seguirá no topo da agenda, não importa o que aconteça.
Assinar o acordo entre UE e Mercosul no Conselho da UE neste ano ainda é uma meta da Alemanha?
Estamos totalmente comprometidos com o acordo. Falou-se muito na imprensa após a chanceler [federal Angela Merkel] se reunir [em 20/08] com as ativistas do clima. Mas o que o porta-voz da chanceler disse não é diferente do que havíamos dito antes. Seguimos comprometidos com o conteúdo e o espírito do acordo entre a UE e o Mercosul. Porém o acordo não trata apenas de comércio, mas também de outras áreas, e o processo inteiro, de negociação e ratificação, não ocorre em um vácuo. Há uma realidade política na Alemanha. E há também a realidade política no Brasil, que acompanhamos de perto.
A ativista alemã Luisa Neubauer tuitou, após a reunião com Merkel, que a chanceler disse a ela que "definitivamente" não assinaria o acordo. No dia seguinte, o porta-voz de Merkel afirmou que a chanceler tinha "sérias dúvidas" sobre a implementação do acordo devido ao aumento do desmatamento. A assinatura do acordo pelo Conselho da UE será suspensa ou adiada para o próximo ano?
Não há nenhuma decisão tomada sobre adiar a assinatura. Desde o início, era ambicioso assiná-lo durante a presidência da Alemanha. E ainda temos essa ambição. Porém, estamos acompanhando com cuidado o que está acontecendo aqui em todas as áreas cobertas pelo acordo UE-Mercosul. Se há notícias do Brasil sobre desmatamento, isso não passa despercebido na Alemanha. Há muita sensibilidade em todo o espectro político alemão sobre temas relativos a clima e meio ambiente, especialmente desmatamento.
Então, apesar do relato de Neubauer sobre a conversa dela com Merkel, a Alemanha ainda está…
… totalmente comprometida. Mas precisamos ver progressos concretos, especialmente sobre o desmatamento. Não promessas ou palavras, mas progresso real.
Quando o sr. fala em progresso real, a que se refere?
Precisamos ver uma redução nos números [de área desmatada]. É uma realidade política. Não quero apresentar isso como uma pré-condição, mas uma redução nos números de desmatamento tem repercussão direta na percepção política na Alemanha.
De agosto de 2019 a julho de 2020, houve crescimento de 34% no desmatamento na Amazônia. Em junho de 2020, a área desmatada na região foi 10% maior do que no mesmo mês do ano anterior. Além do acordo entre UE e Mercosul, como isso pode afetar as relações comerciais e diplomáticas entre Alemanha e Brasil?
Na diplomacia, o importante é conversarmos uns com os outros. E sempre que me reúno com membros do governo brasileiro, é essa a mensagem que eu transmito. No aspecto comercial, vejo uma preocupação crescente de empresas sobre o desmatamento em especial, porque elas estão preocupadas com os investidores, e os grandes investidores estão ficando cada vez mais críticos. E as empresas também estão preocupadas com seus consumidores, que prestam atenção à origem dos produtos e as colocam sob pressão.
A indústria alemã, representada pela sua federação, a BDI [Bundesverband der Deutschen Industrie], foi uma grande entusiasta do acordo devido a seu potencial para elevar as exportações ao Mercosul. Como o setor industrial alemão hoje encara o acordo, tendo em vista a questão ambiental?
Terei minha primeira conversa longa com eles hoje [31/08] à tarde, mas vejo cada vez mais preocupação da comunidade empresarial. Mas também há, do lado do governo, um grande interesse em concluir o acordo. Porém precisa ser no momento correto.
O Fundo Amazônia, que era parcialmente sustentado pela Alemanha [em conjunto com a Noruega], foi suspenso em agosto de 2019 após divergências sobre suas regras de gestão. Há perspectiva de alcançar um entendimento e retomar os repasses para o fundo?
É claramente nossa aspiração e a negociação está em andamento, mas não gostaria de falar sobre ela. De qualquer forma, queremos fazer o fundo voltar a funcionar.
Em termos gerais, há no Brasil ambiente de negócios para as companhias alemãs fazerem novos investimentos?
A pandemia do coronavírus mudou tudo, e as tendências foram interrompidas. A Alemanha também está em uma recessão profunda, o PIB caiu 9% comparado ao ano passado [no segundo trimestre]. Isso exigirá uma revisão de decisões empresariais que haviam sido tomadas.
Alguma reforma específica no Brasil seria importante para atrair mais investimentos da Alemanha?
Nenhum país é perfeito, nós fizemos muitas reformas, mas vejo muita necessidade de reformas na Alemanha também. O Brasil é uma das economias mais fechadas do G20 [grupo formado pelas 19 maiores economias do mundo e a União Europeia]. Seria positivo ter mais trocas, em todos os níveis, e não apenas no aspecto econômico.
Na semana passada, a embaixada alemã no Brasil organizou um evento sobre o declínio da democracia ao redor do mundo. Na sua opinião, o Brasil atravessa um período de declínio da sua democracia?
Não teria capacidade para opinar. Vejo uma democracia vigorosa, com muito debate e disputas abertas, e uma imprensa ativa e multifacetada. Esse evento era mais sobre tendências globais. Precisamos sempre nos esforçar para manter nossos sistemas democráticos funcionando, em qualquer lugar, e também na Alemanha. Não devemos criticar os outros, mas ter autocrítica e melhorar nossas instituições. Democracia é sempre um trabalho em andamento. E democratas de todo o mundo devem compartilhar suas experiências.
No último sábado, houve protestos de negacionistas da covid-19 e grupos de extrema direita em Berlim, e alguns manifestantes tentaram invadir o Reichstag, a sede histórica do Parlamento alemão. Esses grupos representam algum risco à democracia na Alemanha?
Não vejo nenhum risco à democracia na Alemanha. São uma pequena minoria de pessoas. Mas o que ocorreu é chocante. Precisamos ficar atentos e denunciar o que acontece. Isso é algo sério, o Reichstag é um símbolo da nossa democracia e deve ser tratado como tal.