Alice Guy, a primeira diretora de cinema do mundo
16 de agosto de 2019Graças à crescente consciência sobre a igualdade de gênero no cinema, uma pioneira esquecida da sétima arte está de volta aos holofotes: Alice Guy (1873-1968) está sendo homenageada no Stummfilmfestival, o mais importante dedicado ao cinema mudo da Alemanha, em Bonn, em que será exibida uma seleção das obras da cineasta francesa, acompanhada de música ao vivo.
"Após o movimento #metoo e discussões sobre igualdade de gênero, uma nova pesquisa dedicada a Alice Guy permitiu que especialistas descobrissem que ela dirigiu mais filmes do que se pensava; filmes que foram atribuídos a seus colegas diretores nos primórdios do cinema", explica Stefan Drössler, diretor do Museu do Cinema de Munique.
Por muitos anos, Drössler foi curador do renomado International Silent Film Festival (Festival Internacional do Cinema Mudo) em Bonn. Antes, ele também organizara exibições de filmes de Alice Guy na Universidade de Bonn – em alguns casos, sem mesmo se dar conta de que ela era a diretora das obras.
Drössler menciona, por exemplo, A fada do repolho (título original: La fée aux choux), incluído na programação do festival de 2019. "Nós já o havíamos mostrado em Bonn no ano passado, mas não foi registrado como um filme de Alice Guy". Agora, A fada do repolho foi restaurado digitalmente e faz parte da programação do festival, desta vez com o devido crédito à diretora.
Os filmes dos primeiros anos do cinema não tinham créditos como se conhece hoje, explica Drössler, normalmente só se apresentava o título. Os cineastas pioneiros produziam muito rapidamente, como numa linha de montagem. Só mais tarde especialistas tentaram determinar seus autores. E eles eram quase exclusivamente homens.
Através de digitalização, pesquisa aprofundada e uma consciência diferente sobre o papel das mulheres nos primórdios do cinema, os créditos de algumas obras estão sendo reatribuídos.
Veterana do cinema
Alice Guy foi uma pioneira do cinema, e sua história está bem documentada já há algum tempo. Nascida em 1873 no leste de Paris, ela trabalhou inicialmente como secretária de uma fábrica de câmeras fotográficas, até descobrir um meio completamente novo: o filme.
Depois de assistir às primeiras sessões dos irmãos Lumière em Paris, Guy começou a trabalhar para um novo empregador: a companhia cinematográfica Gaumont, onde lhe permitiram também realizar trabalho de direção. E aparentemente foi bem-sucedida: alguns historiadores do cinema chegam a argumentar que foi a primeira pessoa a dirigir um filme narrativo de ficção – uma afirmação que permanece contestada.
Guy avançou a chefe de produção do estúdio de cinema da Gaumont, de 1897 a 1907, e formou sua reputação através de seus filmes. Como era típico na época, dirigiu curtas-metragens de diferentes gêneros: filmes de ação, faroestes ou comédias. Em 1906 rodou a ambiciosa produção La vie du Christ (A vida de Cristo), com centenas de figurantes.
Desde cedo, ela experimentou com som e cor, e também fez reflexões sobre a igualdade de gênero: "Não há nada relacionado à encenação de um filme que uma mulher não possa fazer tão facilmente quanto um homem", escreveu a cineasta na revista americana Moving Picture World, em 1914. A essa altura, já morava nos Estados Unidos.
Guy trabalhou em centenas de filmes como diretora e produtora. Em 1907, casou-se com o cinegrafista Herbert Blaché, com que se mudou para os EUA. Na história do cinema, ficou conhecida como Alice Guy-Blaché.
Em 1910, a cineasta francesa estabeleceu sua própria produtora, chamada Solax. Por várias décadas, foi uma das únicas mulheres à frente de um estúdio de cinema americano, junto a Lois Weber. No começo da década de 20 ela deixou a indústria cinematográfica, após uma série de fracassos. Depois do divórcio, voltou com seus dois filhos para a França.
Esquecida pela história do cinema
Por muitos anos, o nome de Alice Guy desapareceu da maioria dos relatos sobre a história da sétima arte. Mais de 90% dos historiadores do cinema foram homens, aponta Stefan Drössler, "e a maioria deles deu pouca atenção às contribuições das mulheres para a arte".
A lenta redescoberta do trabalho de Alice Guy veio através de um festival de cinema francês focado em mulheres cineastas, nos anos 70. A diretora não estava mais lá para testemunhá-lo, pois morrera em 1968, aos 95 anos, e suas memórias só foram publicadas postumamente. Desde então, realizaram-se diversos documentários sobre seu trabalho, e festivais organizaram retrospectivas de seus filmes.
Ela tinha seu próprio estilo e "agora que sabemos mais sobre Alice Guy, é mais fácil reconhecer certos motivos artísticos em seus filmes". É assim que obras como A fada do repolho puderam ser redescobertas como sendo dela.
Há outros exemplos, entre os filmes exibidos em Bonn, de como ela introduziu "motivos femininos" nos primórdios do cinema: no faroeste mudo Two little rangers (Duas pequenas vigilantes), de 1912, mulheres armadas caçam um vilão; em A madame com desejos (1907), uma grávida tem desejos tão fortes, que rouba comida alheia.
Alice Guy abordou a questão do gênero de forma particularmente original em Les résultats du féminisme (Os resultados do feminismo, de 1906): "O filme mostra cenas em que papéis típicos de gênero são invertidos", explica Drössler. Os homens são mostrados costurando roupas, passando a ferro e cuidando das crianças, enquanto as mulheres fumam charutos, leem jornal e são servidas. E nas ruas as mulheres são as que seduzem os homens, e eles fogem com medo, assim que elas se aproximam.
O 35º Stummfilmfestival de Bonn transcorre de 15 a 25 de agosto de 2019. Alguns filmes de Alice Guy também estarão em exibição em setembro no Museu do Cinema de Munique.
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