Ameaça islamista ainda assombra as Filipinas
20 de dezembro de 2018Com seu jovem rosto escondido por um lenço, Abdul olha para a câmera enquanto contempla seu sonho aniquilado. Ele perdeu dezenas de amigos. Sua família ficou desabrigada após ser obrigada a se deslocar.
"Nosso plano original se limitou a atacar o campo militar em Marawi e expulsar os soldados da cidade", contou o jovem à DW. Os líderes jihadistas locais que sitiaram Marawi sob a bandeira do "Estado Islâmico" (EI) convenceram Abdul e seus colegas combatentes de que o governo filipino se retiraria em seguida. "Eles nos disseram que conseguiríamos o que sempre quisemos: um Estado islâmico aqui em Marawi."
Mais de um ano após o pior conflito urbano nas Filipinas desde a Segunda Guerra Mundial, o centro histórico de Marawi – a maior cidade muçulmana do país, na ilha de Mindanau – permanece fechado. Ataques aéreos sistemáticos, artilharia pesada e combates impiedosos de casa em casa transformaram a área numa cidade-fantasma bombardeada, com construções esqueléticas que lembram as ruínas devastadas pela guerra em Aleppo, Raqqa e Mossul, no Oriente Médio.
Séculos de opressão
Pouco mais de 5% da população filipina são muçulmanos, enquanto a grande maioria é de católicos romanos. Mais de 90% de todos os muçulmanos – cerca de 6 milhões de pessoas – vivem em Mindanau, no sul do país, e nas ilhas vizinhas menores de Basilan, Sulu e Tawi Tawi. Mas mesmo ali eles são minoria.
Existe um senso predominante de injustiça no local, que remonta aos colonizadores espanhóis que introduziram o cristianismo no século 16 e submeteram a população local indígena e muçulmana à sua campanha de "pacificação". Depois, vieram os Estados Unidos, logo seguidos por forças japonesas no século 20. E hoje existem os chamados "imperialistas" na capital, Manila, ao norte.
Abdul está convencido de que a grande maioria dos políticos filipinos é corrupta e desonesta. Ele também acredita que o governo está enviando "colonizadores cristãos" a Mindanau para expulsar muçulmanos como ele.
O sonho de um Estado islâmico se tornou, para Abdul e muitos outros, a solução milagrosa para o desemprego, a pobreza e a raiva. A família dele apoia tradicionalmente o maior grupo rebelde muçulmano, a Frente Moro de Libertação Islâmica, mas Abdul preferiu integrar secretamente os extremistas do grupo radical islâmico Maute, que jurou lealdade ao EI.
"Sentimento de fraternidade"
Os líderes do grupo, Abdullah e Omar Maute, passaram muitos anos no Oriente Médio, onde adotaram uma visão mais radicalizada de como interpretar a religião e a vida. Após seu recrutamento, em 2015, Abdul passou meses num campo de treinamento na selva onde aprendeu a usar armas e facas, aproveitando o que ele chama de "sentimento de fraternidade".
Com o Telegram, o WhatsApp e outras redes sociais, Abdul e seus amigos regularmente recebiam vídeos e sermões do EI vindos da Síria e do Iraque. Segundo o jovem, havia também cerca de 30 combatentes estrangeiros em seu campo de treinamento, principalmente das vizinhas Indonésia e Malásia, mas também de países árabes. A DW não conseguiu verificar seu relato.
Ao final de seu treinamento com o Maute, Abdul ganhou um fuzil Kalashnikov e o equivalente a 160 euros (cerca de 700 reais). Aquele foi apenas o primeiro pagamento de um salário mensal corrente para prepará-lo para a futura batalha.
Longos anos de violência em Mindanau criaram um vácuo perigoso. Como resultado, passaram a florescer regimes de clãs, redes criminosas, corrupção e grupos jihadistas dissidentes.
Abdul admite ter usado seu fuzil em confrontos entre duas famílias rivais em Marawi, matando sem remorso. "Mesmo que pessoalmente você não tenha inimigos, os inimigos de seu clã são seus inimigos. É assim que funciona aqui", afirma.
Cerco a Marawi
O ataque à base militar no centro de Marawi foi planejado para meados de 2017, após o mês sagrado muçulmano do Ramadã, no final de junho. Mas depois que combatentes do grupo extremista Abu Sayyaf, aliados do Maute, foram descobertos no local, o Maute decidiu adiantar o cerco.
Segundo fontes do governo, cerca de mil combatentes, a maioria nativos, se esconderam em residências, mesquitas e escolas no final de maio de 2017. Eles fizeram reféns e decapitaram um número desconhecido de cristãos.
Questionado sobre o caso, Abdul é evasivo. "Nos disseram para agir apenas contra cristãos que pertenciam ao governo", afirma. Ele então lembra as lições de estudo do Alcorão que recebeu no campo de treinamento na selva: "Nos ensinaram que o Islã permite vingar a injustiça".
Abdul e sua família estavam fazendo compras na cidade vizinha de Iligan quando a batalha em Marawi começou. Como não pôde participar diretamente, ele espionou os militares e repassou detalhes da movimentação das tropas para seus amigos entrincheirados no centro da cidade.
Por fim, foram necessários cinco meses de ataques aéreos, bem como o envio de 12 mil soldados e unidades de inteligência do Exército dos Estados Unidos para devolver a cidade ao controle do governo. Alguns combatentes conseguiram escapar, e Abdul se escondeu. Desde então ele voltou a morar com os pais e, até agora, não foi identificado.
Estima-se que cerca de 1.200 pessoas tenham morrido na batalha. O governo alega que quase todos eram combatentes jihadistas. Mas muitas famílias ainda buscam parentes desaparecidos, e a maioria das vítimas foi enterrada sem identificação em valas comuns. Devido à escala de destruição, 65 mil pessoas ainda vivem em abrigos de emergência. A lei marcial continua em vigor.
Questionado se valeu a pena toda a morte e destruição, Abdul parece tentar se livrar da culpa. "Eles fizeram uma lavagem cerebral em nós. Eles nos prometeram tempo e, de novo, que a vida em Marawi iria melhorar assim que tivéssemos um estado islâmico", diz, de forma quase desafiadora. "Eu realmente não vi nada disso acontecendo. Eles prometeram que não seríamos atacados na cidade."
Abdul está bravo – com o governo "por bombardear Marawi" e com seus irmãos mortos do Maute "por quebrar suas promessas". Agora aos 21 anos, ele voltou ao desemprego.
Autonomia para os muçulmanos?
O presidente mão de ferro Rodrigo Duterte – o primeiro líder filipino oriundo de Mindanau – prometeu mais autonomia aos muçulmanos. Se tudo correr conforme o planejado, a comunidade minoritária ganhará essa autonomia com base num quadro constitucional conhecido como Lei Orgânica de Bangsamoro, aprovada no início deste ano.
O parceiro mais importante do governo na negociação do processo de paz é o maior grupo rebelde do país, a Frente Moro de Libertação Islâmica, que assinou um acordo de cessação do conflito com o governo em 2014. Assim que os muçulmanos tiverem sua autonomia – esperada para 2022 – o grupo diz que planeja desarmar cerca de 30 mil combatentes.
Porém, se o caminho para a autonomia se tornar um beco sem saída, "muitas pessoas aqui questionarão seriamente nossa credibilidade", adverte Sammy al-Mansoor, comandante-chefe dos combatentes da Frente Moro, em entrevista à DW em sua modesta sede na selva. "Assim o EI poderia novamente tentar tirar proveito da situação e roubar nossos soldados, e isso seria de fato muito perigoso."
Ainda se recuperando da derrota, a promessa de autonomia aos muçulmanos é a nova esperança de Abdul por uma vida melhor, e um substituto para o sonho destruído de um Estado islâmico. Mas por quanto tempo? Jovens revoltados como ele – que se inspiram rápida e se desapontam facilmente – continuam suscetíveis à propaganda jihadista global, que tenta se firmar no sudeste da Ásia.
"Eu lutaria de novo", afirma Abdul. "Mas não em nosso território muçulmano. Porque seria nosso próprio povo quem mais sofreria. Mas, se a batalha acontecer em outro lugar, eu participo."
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