Amizade com dignidade
19 de maio de 2003Em 1997 o então presidente alemão, Roman Herzog, lançou a tradição do Discurso Berlinense. Na Alemanha, o presidente preenche sobretudo funções protocolares, portanto seu instrumento é a palavra, o apelo, a advertência. Desde sua tomada de posse, o atual chefe de Estado, Johannes Rau, aproveita uma vez por ano essa ocasião para tratar de um tema político de relevância, apontando caminhos e conclamando à reflexão. Nesta segunda-feira (19), seu discurso Agindo em conjunto – A responsabilidade da Alemanha no mundo teve como foco as relações transatlânticas, seriamente abaladas desde o início da guerra dos Estados Unidos contra o Iraque.
Em consonância com seu temperamento moderado, Rau escolheu o caminho do meio, entre a admoestação enfática e o comentário reservado. Ele revelou que não exclui o emprego da violência como último recurso, em determinadas situações. "Contudo vejo o perigo de que, enquanto falamos em 'meios extremos', na realidade ocorra um processo de habituação, ao fim do qual a intervenção militar e a guerra se tornem meros instrumentos da política internacional, entre tantos outros. Por isso é preciso investir mais energia e meios financeiros, mais cedo, a fim de resolver ou pelo menos minorar os conflitos com meios civis."
"É preciso coragem de agir por meios civis", exortou o presidente. Ele expressou-se a favor de um amplo debate na sociedade, abordando as conseqüências de um maior engajamento internacional. Rau lembrou que, após os atentados de 11 de setembro de 2001 e da crise do Iraque, muitos cidadãos da Alemanha levaram às ruas questões urgentes. Sua preocupação central eram não só as reviravoltas internacionais da política mundial, mas também o papel da Alemanha.
É preciso compreender o que o aumento de responsabilidade significa para o país, enfatizou: "Afinal, precisamos refletir o que significa para a Alemanha a Europa assumir uma maior responsabilidade no cenário mundial. Que conseqüências isso terá para nossos próprios esforços na política de segurança?" Para o presidente uma questão a ser debatida concretamente é: que perfil terá o futuro Exército alemão?
Apelo à compreensão
As reviravoltas recentes revelam a necessidade de uma evolução do direito internacional, sobretudo nos pontos onde ele serve para proteger ditadores. Sem mencionar diretamente a guerra do Iraque, Rau acrescentou, restritivamente: "Mas todas as considerações de reforma devem levar em conta que, no futuro, nenhuma nação possa exigir para si o direito de intervenção". Ele propôs um papel decisivo para a ONU, dentro deste quadro: "As Nações Unidas e suas organizações deverão ser o mais importante instrumento global de política multilateral – apesar de todas as suas falhas do passado".
No tocante ao conflito transatlântico em torno do Iraque, o chefe de Estado alemão criticou o nível dos debates: "Em muitas tomadas de posição e declarações públicas, incomodou-me a escolha de termos, o tom e a personalização equivocada, exagerada". Ele pediu mais compreensão para as reações norte-americanas aos atentados contra o World Trade Center e o Pentágono: "Possivelmente nós, alemães e europeus, temos dificuldade em avaliar quanto o 11 de setembro de 2001 atingiu um país que até então acreditava ser invulnerável".
Naturalmente Rau sublinhou a importância dos Estados Unidos, tanto para os europeus como para o mundo inteiro. Porém demonstrou saber que a Europa ainda precisa esforçar-se muito, até transformar sua força potencial em real influência política: "Entre amigos, um não pode esperar que o outro faça algo contra sua convicção íntima". A frase contém naturalmente uma alusão velada à guerra no Iraque e sua condenação por uma série de países europeus, entre os quais a Alemanha. Mas também a necessária constatação de que é possível ter uma opinião diversa da do amigo EUA. De cabeça erguida.