"Apenas racismo não explica adesão a Trump e Bolsonaro"
14 de setembro de 2023A adesão dos trabalhadores a projetos extremistas, como o de Donald Trump, nos Estados Unidos, e mesmo com Jair Bolsonaro, no Brasil, é fruto não só da política do ressentimento de uma classe trabalhadora branca, mas, principalmente, pela deterioração das condições de vida causada pelas novas organizações do trabalho e da sociedade, de acordo com a análise de sociólogo Ruy Braga, da Universidade de São Paulo (USP).
Autor de A angústia do precariado, último livro de uma trilogia sobre a formação do precariado global, lançado agora pela editora Boitempo, Braga afirma que o advento de novas tecnologias, a desigualdade se aprofundou entre os trabalhadores, deixando alguns mais expostos à exploração econômica.
O sociólogo destaca, porém, que apesar da crise de representação que atinge os sindicatos tradicionais, esse ambiente atual faz com que surja uma nova onda sindical, com uma forte centralidade nas comunidades onde esses trabalhadores vivem, como o do movimento dos sem teto, por exemplo, que luta pelos direitos civis em um contexto mais amplo.
Em entrevista à DW, Braga comenta ainda a expansão do nacionalismo branco de direita e aponta a necessidade de recuperar o sentido democratizante da luta da classe trabalhadora em escala global.
DW: Qual é o sentido do precariado global que o senhor analisa, seja ele do Brasil ou dos Estados Unidos?
O precariado global é aquele setor composto por trabalhadores em condições precárias de vida e de trabalho que transitam permanentemente por um aprofundamento da exploração econômica. Isso ocorre com o desenvolvimento dessas empresas de tecnologia, da indústria 4.0, do tratamento massificado dos dados, dos aplicativos de entregas, por exemplo.
Esse fenômeno tem produzido um aprofundamento da exploração econômica, quer seja pela intensificação do ritmo de trabalho, quer seja pelas estratégias empresariais de terceirização. Ou seja, é tudo aquilo que fragiliza e fragmenta o mundo do trabalho, do trabalhador, e sua representação sindical e política. E isso tudo implica, por exemplo, em condições piores de negociação de salários, condições de trabalho, e assim por diante.
Durante a pandemia, os trabalhadores essenciais se transformaram em sujeitos políticos, porque passaram a assumir todos os riscos e, ao mesmo tempo, eles continuaram sendo sub-remunerados e isso é o que impulsionou em larga medida esse ciclo grevista nos Estados Unidos e também a formação de novos sindicatos.
Aqui no caso brasileiro teve um exemplo típico também que foi o breque dos aplicativos, o breque dos empregadores que também foi exatamente essa mesma dinâmica nesse mesmo contexto.
Como o senhor analisa esse novo sindicalismo que nasce nos EUA? Há algum paralelo com o sindicalismo brasileiro, tão forte nos anos 1980, mas que agora passa por crise de representação também?
As dinâmicas são diferentes. No entanto, é possível perceber uma questão. Hoje existe nos Estados Unidos uma forte presença, uma forte centralidade das comunidades onde vivem e se reproduzem os trabalhadores, em especial os trabalhadores precários, aqueles que eu costumo chamar de precariado.
É fácil você perceber isso quando você pensa, por exemplo, nessa sobreposição entre o movimento Black Lives Matter, que se nacionaliza a partir do levante de Ferguson, e o surgimento desse novo sindicalismo de justiça social, como eu designei no livro, que passa a florescer a partir dessa experiência ativista.
Elas acabaram funcionando nesse processo de reorganização dos trabalhadores no âmbito dos locais de trabalho, nesse âmbito mais sindical, mais tradicional. Então, essa sobreposição é fundamental.
No Brasil, a gente observa, a partir dos meados da década de 2010, um crescimento forte, importante, significativo do movimento de trabalhadores sem teto, por exemplo. Você tem essa mesma dinâmica, as comunidades estão se reorganizando, é claro que com uma pauta distinta daquela pauta tradicional dos sindicatos, mas com características ou com identidade de trabalhadores.
Como o fenômeno do precariado auxiliou o surgimento do nacionalismo branco de direita nos EUA, representado por Donald Trump por lá, copiado mesmo no Brasil, com Jair Bolsonaro?
O que eu procuro apresentar no livro é uma tentativa de desconstruir uma narrativa padrão, que se popularizou de maneira muito ampla, de que a política do ressentimento da classe trabalhadora branca explicaria o avanço do nacionalismo autoritário, do Trumpismo, e coisas do gênero, como o Bolsonarismo.
De fato, Trump é seguramente o político republicano mais popular do país. A questão é: a política do ressentimento e do ódio branco explica a ascensão e a popularidade do Trumpismo? O meu argumento é que não, ela explica uma parte da história, não a parte fundamental.
A crise econômica pós-2008, da epidemia de opioides que atinge duramente as cidades pequenas, onde vivem essa classe trabalhadora branca, que vivenciam o aumento da violência social, criou uma crise social que desmantelou o modo de vida dessa classe trabalhadora branca, que é um modo de vida rural, um modo de vida no qual a proximidade, a intimidade, a familiaridade, a relação com o meio, com a natureza. Isso está colapsando. Essas comunidades estão em agonia, elas estão em angústia.
Parece que a política econômica ainda pesa muito mais do que qualquer outra discussão que a gente de grandes centros tem. Não é que não há racismo, ele existe, mas o problema é saber se o racismo explica essa adesão desses trabalhadores ao nacionalismo autoritário, essa fanatização, que não se verifica, na minha opinião.
Portanto, a precarização do trabalho é um fenômeno global, incluindo aí o Brasil. Que soluções possíveis há para o cenário de crise para os trabalhadores atuais?
Temos que trazer os trabalhadores para um diálogo sobre democracia e isso passa menos pelo local de trabalho e muito mais pelas comunidades onde esses trabalhadores vivem. E essas comunidades são mais sensíveis, mais permeáveis à prática, por exemplo, das igrejas, ou, vamos dizer assim, da religiosidade popular, que está, no caso brasileiro ou no caso americano, marcado pela ação dessas igrejas evangélicas.
Os setores politicamente progressistas têm que seguir esse modelo, ou seja, de aproximação da classe trabalhadora e de diálogo com a classe trabalhadora nas comunidades. E, a partir daí, procurar efetivamente estabelecer pontes com o mundo do trabalho organizado, com os sindicatos, porque também não é verdade que as pessoas não queiram a proteção trabalhista, não queiram a proteção social, elas querem. Só que isso aí é uma conversa muito distante da vida delas.