Após crise do coronavírus, norte da Itália busca culpados
22 de junho de 2020"Tudo aqui estava repleto de caixões, 132 deles!", conta o padre Marco Bergamelli, esticando os braços e apontando para o interior da capela, em Bérgamo, no norte da Itália. Hoje já há bancos novamente no local, ainda que a maioria deles esteja selada e coberta com avisos. Tais medidas são provavelmente desnecessárias, já que muitos frequentadores sequer se atrevem a voltar à capela.
As dimensões da crise provocada pelo coronavírus na região ficam evidentes sobretudo ao se caminhar pelo cemitério principal de Bérgamo. Não muito longe da entrada, uma área se destaca: mais de cem túmulos bem simples, construídos às pressas e cercados por ripas de madeira. A maioria deles não tem lápide, mas apenas um pedaço de papel laminado com os nomes dos mortos. "Estes são os túmulos dos mortos pelo coronavírus", explica Bergamelli.
Das mais de 34 mil pessoas que já morreram em decorrência da covid-19 na Itália, mais de 16 mil eram da Lombardia, onde fica Bérgamo. Na cidade de 120 mil habitantes, quase não há quem não tenha perdido algum parente ou não conheça alguém que tenha sido infectado pelo vírus.
Bergamelli conta que, após um toque de recolher imposto em todo o país no dia 9 de março, ele teve que assistir ao enfileiramento crescente de caixões em sua pequena capela. O crematório do cemitério não conseguia dar conta da demanda. Ele relata ainda que os militares coletavam de 50 a 60 caixões por semana e os levavam a Florença, Bolonha ou Ferrara para cremação. Apesar disso, a cada dia havia mais caixões na capela.
No início, o padre realizou uma missa fúnebre. Chegou um momento, porém, em que lhe pareceu arriscado demais. "Eu passei a ter medo de ficar no mesmo ambiente que todos aqueles mortos do coronavírus", diz. "Dez dias depois, começou a cheirar, e não apenas a pinheiros e abetos no cemitério", conta.
Atualmente, não se abrem mais sepulturas todos os dias. Na cidade, visivelmente moldada pela crise, os moradores tentam se acostumar à nova realidade. Máscaras são obrigatórias por toda Bérgamo: nas ruas e até mesmo quando se está sentado com mais alguém dentro do carro. Cafés e restaurantes foram reabertos, mas com medidas especiais de higiene: cardápios são descartados após cada pedido, e, em muitos locais, antes mesmo de se sentar, o freguês tem sua febre medida.
Quem é o responsável pela crise?
Embora muitos não desejem nada mais do que voltar à vida de antes da pandemia, há quem não consiga lidar com tudo isso com tanta facilidade. Stefano Fusco é um deles. O jovem e seu pai fundaram a organização Noi Denunceremo ("Nós denunciaremos"). O grupo quer respostas sobre por que tantas pessoas tiveram que morrer na região.
Stefano perdeu o avô, que em fevereiro havia sido hospitalizado em decorrência de um leve derrame. Durante a reabilitação, o idoso de 85 anos apresentou febre e começou a tossir. Ele testou positivo para o coronavírus e faleceu poucos dias depois. A situação foi particularmente trágica para a avó de Stefano, conta o jovem. A família teve que lhe dar a notícia por telefone, deixando-a sozinha com sua dor, pois ela estava em quarentena.
Alguns dias após a morte do avô, Stefano e o pai fundaram a Noi Denunceremo. Com a página no Facebook, eles pretendiam ajudar aqueles que tinham que ficar em casa e lidar sozinhos com a dor. Atualmente, o grupo já conta com mais de 60 mil pessoas. A maioria das histórias, segundo Stefano, seguem um padrão recorrente.
"Muitas pessoas morreram sozinhas em casa. Muitas não foram admitidas no hospital até já estarem quase mortas. Elas provavelmente poderiam ter sido salvas se tivessem recebido ajuda mais cedo", diz.
O Ministério Público de Bérgamo deu agora início a uma investigação apoiada pela Noi Denunceremo. Para Stefano, a responsabilidade é do governo regional, que teria reagido de maneira muito hesitante e falhado, por exemplo, no isolamento dos municípios de Alzano Lombardo e Nembro, nos arredores de Bérgamo, que acabaram se tornando o principal foco de infecção na Itália.
Governo regional sob pressão
O chefe do governo regional na Lombardia, Attilio Fontana, contudo, não se considera responsável pela crise. Seu escritório fica num prédio no centro de Milão, de cujo terraço, no 38º andar, pode-se ver muito além das fronteiras da metrópole econômica mais importante da Itália. Acusado de dar mais importância aos lucros do que à proteção da população, o político, do partido de extrema direita Liga, nega.
Ele afirma ter sido favorável à criação de uma área restrita desde o início de março, mas afirma que o governo em Roma rejeitou a ideia. "Creio termos tentado de fato dar todas as respostas e tomar todas as medidas necessárias nessa situação realmente extraordinária, na qual ninguém, na verdade, sabia muito sobre o vírus", diz.
Após dar uma volta pelo cemitério de Bérgamo, o padre Bergamelli chega agora em frente ao crematório. O local está abandonado, sem nem sinal da alta rotatividade vista nos últimos meses. Ele fala sobre a dor dos familiares e a incerteza que ainda afeta muitas pessoas na cidade. Mas lentamente a vida volta ao que era antes, fica mais calma, diz. Ele então se despede e, a passos largos, volta apressadamente à sua capela, em frente da qual já aguarda um carro funerário.
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