Argentina avança na inclusão de pessoas trans
29 de junho de 2021"O amor que nos negaram é nosso impulso para mudar o mundo", escreveu a ativista trans argentina Lohana Berkins, com a saúde já deteriorada, em sua carta de despedida.
Hoje, uma lei que obriga o Estado a reservar pelo menos 1% das vagas na administração pública da Argentina para travestis, transexuais e transgêneros leva seu nome. E também seu espírito, sua luta e a de muitas de suas colegas.
"Os trans e travestis foram excluídos de todos os direitos humanos fundamentais, agora o Congresso entendeu que deveria mudar nosso destino de violência e morte", diz Marcela Tobaldi, fundadora da Associação Civil La Rosa Naranja e membro da Frente de Orgulho e Luta, uma das três organizações nacionais que impulsionaram a nova legislação, aprovada na quinta-feira passada (24/06).
A lei estabelece uma cota no número total de cargos nos três poderes, nos Ministérios Públicos, órgãos descentralizados ou autônomos, entidades públicas não estatais, empresas e sociedades governamentais em todas as formas de contratação.
Também estão previstos incentivos fiscais para empresas privadas por um ano, período que será estendido para dois anos no caso de pequenas e médias empresas que contratarem os beneficiários da lei.
Lei leva em conta vulnerabilidade social
Críticos do projeto questionaram que o Estado não promova as contratações por capacidade e competência, e colocaram em questão a prioridade do tema numa agenda pública, que, segundo eles, deveria passar pelas urgências sanitárias e econômicas do país.
A nova lei, porém, além de criar um patamar mínimo de 1% de vagas para pessoas trans, considera os fatores sociais de vulnerabilidade para esse segmento da população.
Por exemplo, o texto determina que o requisito de ensino completo não poderá ser um obstáculo para a contratação, estabelecendo que o emprego público será a condição para se cursar o nível de escolaridade requerido.
A nova legislação também indica que antecedentes "penais irrelevantes" não poderão ser impedimentos para a contratação e que a quota trans terá prioridade nas contratações do Estado.
"Esta lei significa o reconhecimento de uma violência estrutural perpetuada há muito tempo pelo Estado, instituições e sociedade, e a vontade de repará-la", diz, por sua vez, Thiago Galván, vice-presidente da Liga LGBTQI+ das Províncias.
"A aprovação desta lei terá um impacto sobre o indivíduo e o coletivo. E também vamos transformar culturalmente uma sociedade que historicamente associou e confinou travestis e mulheres trans à prostituição e à criminalidade", comenta Claudia Vásquez Haro, presidente da Otrans Argentina e da Convocatória Federal Trans e Travesti da Argentina.
"Lei reconhece exclusão de parte da população"
O Senado aprovou a lei por um placar de 55 votos favoráveis, um contrário e seis abstenções. Duas semanas antes, a Câmara dos Deputados havia dado o aval por 207 votos favoráveis, 11 contrários e sete abstenções.
Após a aprovação, a Casa Rosada, sede do Poder Executivo, foi iluminada com as cores da bandeira trans.
"Esta lei é o orgulho da política", celebra a deputada Monica Macha, presidente da Comissão sobre Mulheres e Diversidade da Câmara dos Deputados da Nação, e uma das principais promotoras da iniciativa.
"É reconhecer que há uma população que é violada e excluída apenas por causa de sua identidade de gênero, e com sua aprovação marcamos um marco para transformar isso de uma vez por todas", completou a legisladora.
A expectativa de vida dos membros deste grupo na Argentina é bem inferior à média nacional: não chega nem mesmo aos 40 anos de idade. E uma parcela alta, próxima a 90%, segundo estimativas de ativistas do setor, acaba trabalhando como prostitutas.
"Esta lei é legítima desde sua origem, porque foi construída a partir da base e representa nossas vozes e exigências na primeira pessoa", diz Vásquez Haro, uma das lideranças da causa trans no país.
"É um sonho tornado realidade", comenta, por sua vez, Tobaldi, entusiasmada. "Após tanta desigualdade, violência institucional, criminalização, estigmatização, detenção, tortura, pobreza e exclusão."
A lei, pioneira na América Latina, reconhece o precedente do decreto presidencial de 2020 no mesmo sentido, e faz parte de uma série de medidas para expandir os direitos deste grupo, como a lei de identidade de gênero aprovada em 2012.
"Historicamente, nosso coletivo foi atribuído a um imaginário determinado pela marginalidade, exclusão, ociosidade, medo, pela noite", explica o ativista e homem trans Thiago Galván. "Quando esta lei for implementada, seremos capazes de construir imaginários com travestis e pessoas trans em escritórios, servindo o público em instituições, estudando na universidade ou atendendo emergências em um hospital."