Ariano Suassuna celebrou o Brasil rural em oposição ao urbano
24 de julho de 2014Numa semana que já havia sido marcada pela morte repentina de outro importante autor brasileiro nascido no Nordeste, João Ubaldo Ribeiro, a morte de Ariano Suassuna nesta quarta-feira (23/07), no Recife, gerou consternação entre artistas, políticos e seus leitores no Brasil. O autor de Auto da Compadecida e Romance d'A Pedra do Reino estava em coma após um acidente vascular cerebral.
A presidente Dilma Rousseff expressou seus pêsames, assim como o ex-presidente Lula da Silva e os presidenciáveis Eduardo Campos e Aécio Neves. Artistas que trabalharam com o autor paraibano, como os atores Matheus Nachtergaele e Fernanda Montenegro, fizeram declarações pessoais, e ainda outros ligados a movimentos que poderiam ser vistos como antagônicos ao Movimento Armorial, como o diretor José Celso Martinez Correa e o músico Lúcio Maia, da banda Nação Zumbi.
Mesmo que polêmico, envolvendo-se em várias controvérsias de caráter nacionalista ao longo de sua carreira, Ariano Suassuna impunha respeito por sua obra, marcada por contribuições importantes tanto ao teatro, com o Auto da Compadecida (1955), quanto à prosa, com seu Romance d'A Pedra do Reino (1971).
Nascido naquela que já foi chamada de Nossa Senhora das Neves, Friederickstadt e Cidade da Parahyba, hoje João Pessoa, sua história pessoal está ligada à história de sua cidade natal. Membro de uma importante família da elite paraibana, seu pai, João Suassuna, governou a Paraíba entre 1924 e 1928.
No dia 26 de julho de 1930, o político que sucedera o pai de Suassuna no governo do Estado (à época chamado de presidente da Paraíba), João Pessoa, é assassinado por João Dantas no Recife. O assassinato é usado como estopim para o golpe de 1930, que depõe o presidente Washington Luís e leva Getúlio Vargas ao poder, pois João Pessoa compõe com Vargas a chapa de oposição para as eleições de março daquele ano, com Vargas como candidato à presidência e Pessoa à vice-presidência – nas quais foram derrotados por Júlio Prestes.
A família Dantas era ligada à família Suassuna, e João Suassuna, pai do escritor, é assassinado em meio aos embates políticos daqueles meses, como retaliação à morte de João Pessoa, no dia 9 de outubro de 1930 – duas semanas antes do golpe de Vargas. Ariano Suassuna tinha à época apenas 3 anos de idade.
Estes não são apenas detalhes biográficos. Em diversas entrevistas, Ariano Suassuna relatou o assassinato do pai como a grande tragédia de sua vida. Isso deixou marcas em seu trabalho e sua visão política. Seu pai era líder das forças rurais do estado da Paraíba, e João Pessoa era visto como líder das forças urbanas.
Os acontecimentos de 1930 viriam a ser interpretados por Suassuna como a vitória do urbano sobre o rural no país. Em sua entrevista ao programa Roda Viva, em 2012, Ariano Suassuna diz que teve que se acostumar muito cedo a ver seu pai retratado como líder das forças reacionárias, arcaicas e atrasadas do Nordeste.
O escritor conta, então, que se o rural era o mal do atraso em relação ao urbano, que ele passaria a elevar e celebrar o rural, o arcaico, o tradicional. É compreensível, portanto, a importância histórica que ele dá à Guerra de Canudos e ao livro de Euclides da Cunha, Os Sertões (1902), como marco e monumento, respectivamente, desse embate entre o Brasil rural e o Brasil urbano, entre o Sertão do interior e o Sertão da rua do Ouvidor. Isso é incontornável para compreender sua visão estética e política.
Ainda estudante de Direito, fundou com Hermilo Borba Filho o Teatro do Estudante de Pernambuco, e seus primeiros trabalhos foram compostos para o teatro, com Uma mulher vestida de sol (1947), quando o autor tinha apenas 20 anos. Sua obra teatral culmina com o Auto da Compadecida (1955), a obra mais conhecida do autor, tanto no teatro como em sua filmagem para a televisão, que levou seu trabalho a uma nova geração.
O Auto da Compadecida por ser colocado ao lado de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto – publicado no mesmo ano – como o momento mais alto de um teatro genuinamente brasileiro, erudito, fincado na tradição ibérica, e ao mesmo tempo popular.
Outra grande obra e contribuição sua é o Romance d}A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de 1971, que seria traduzido para o alemão por Georg Rudolf Lind como Der Stein des Reiches oder die Geschichte des Fürsten vom Blut des Geh-und-kehr-zurück, e editado em dois volumes em 1979.
O crítico Idelber Avelar, professor de Literatura e História Intelectual da América Latina na Universidade de Tulane em Nova Orleans, escreveu sobre o romance: "Como uma epopeia, ele narra a história de guerreiros identificados com um povo. A épica se torna farsa, no entanto, já que os ideais que regem as batalhas parecem anacrônicos, às vezes cômicos e sempre meio divorciados da realidade. Como numa picaresca, a história é narrada em primeira pessoa por um sujeito destituído que deve legitimar-se ante uma autoridade. Como num romance de cavalaria, o herói deve restaurar uma ordem perdida, em meio a brasões, insígnias e todo um aparato de símbolos. Quaderna se declara nada menos que Rei do Brasil, herdeiro da verdadeira família real – não aqueles "charlatães" dos Bragança, diz ele. O pano de fundo d'A Pedra do Reino é esse secular delírio monarquista no sertão brasileiro."
O romance é uma das últimas grandes obras do modernismo brasileiro, com sua mescla de gêneros, seu uso de formas da literatura medieval das línguas latinas e sua narratividade fincada na tradição oral ibérica e brasileira, como se vê tanto em Mário de Andrade e seu uso da rapsódia em Macunaíma (1928), como em João Guimarães Rosa e seu uso da canção de gesta em Grande Sertão: Veredas (1956).
É a essa linhagem modernista que pertence o Romance d'A Pedra do Reino, como à tradição picaresca nacional de um Manuel Antônio de Almeida e seu Memórias de um Sargento de Milícias (1854). Seu trabalho literário e sua visão política encontrariam sua plataforma e unidade na fundação do Movimento Armorial, que buscava a criação de uma arte brasileira que pudesse fundir o erudito e o popular.
Sobre o movimento, Suassuna escreveu no Jornal da Semana do Recife, em 20 de maio de 1973: "A arte armorial brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos 'folhetos' do Romanceiro popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus 'cantares', e com a xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados."
Ariano Suassuna foi secretário da Cultura tanto da cidade do Recife como do estado de Pernambuco. Nessa posição encampou polêmicas com os artistas do Tropicalismo e do Manguebeat, rejeitando suas misturas brasileiras e estrangeiras. No entanto, como já disse uma vez Caetano Veloso e lembrou agora Idelber Avelar ao morrer Suassuna, apesar de suas discordâncias e polêmicas com Chico Science, que ele insistia em chamar de Chico Ciência, quando este morreu em 1997 lá estava Ariano Suassuna, chorando desconsoladamente e carregando o caixão de Science, ou Ciência. Não se pode interpretar isso como uma reviravolta estética de Suassuna. Mas ele soube reconhecer a grande perda, e é com frequência na tragédia que os "Brasis profundos" se encontram. E se reconhecem.