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As fake news que alimentam o racismo

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
20 de janeiro de 2022

Além de comprovar que a Terra é redonda e defender o "Zé Gotinha", no Brasil também se tornou necessário vociferar que a escravidão existiu e foi profundamente violenta e que não, não existe racismo reverso.

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Protesto antirracista no Rio de Janeiro. mulher segura cartaz com a frase: "Quem será o próximo?"
"Há uma liberdade outorgada em desqualificar a luta antirracista sob o manto de um debate democrático que nunca existiu"Foto: Fernando Souz/Zumapress/picture-alliance

Não é de hoje que fake news invadem nosso cotidiano.

No início, elas pareciam ser mais uma brincadeira de mau gosto, fanfarronices da famosa "galera do fundão", que viam nessas notícias falsas uma forma de "descontração". Entretanto, rapidamente as fake news revelaram sua verdadeira face: uma forma espúria e perigosa de fazer política, usada a serviço de um projeto de sociedade muito bem delineado.

Em meio a notícias falsas, eleições foram definidas, e a ciência passou a ser abertamente confrontada por uma enxurrada de mentiras, que repetidas, compartilhadas e retuitadas à exaustão se tornaram verdades para um número significativo de pessoas.

Tudo isso misturado à onda egoico-narcisista potencializada pelas redes sociais, que permite que indivíduos transformem suas opiniões (muitas vezes infundadas) em verdades incontestáveis. "O que eu penso, o que eu acho" tem valido mais do que séculos de conhecimento acumulado. Uma dinâmica perigosa, que coloca à prova a vida coletiva.

Terraplanistas de plantão – que, é preciso dizer, sempre existiram – tiveram suas vozes amplificadas, disputando com astrônomos e astrofísicos qual seria o verdadeiro formato do planeta Terra. O movimento antivacina cresceu de maneira assombrosa, justamente quando a humanidade foi sangrada por uma pandemia que parece não ter fim – e mesmo com vacinas eficientes disponíveis para boa parte da população.

Mas não são apenas as chamadas ciências duras que estão sendo injuriadas pelas fake news. Dinâmicas sociais, relações de poder e fatos históricos também entraram nesse balaio das notícias que são falsas e propositadamente mentirosas. E, como era de se esperar de um país formado pela desigualdade e exclusão racial, no Brasil, o racismo também se tornou um desses temas passíveis de terem sua existência questionada. Além de comprovar que a Terra é redonda e defender o "Zé Gotinha", por essas bandas também se tornou necessário vociferar que a escravidão existiu e foi profundamente violenta e que não, não existe racismo reverso.

É profundamente cansativo ter que lidar com essa dinâmica negacionista. E o cansaço não se dá pela suposta falta de informação daqueles que propagam as fake news. Não estamos numa cruzada educativa, combatendo a ignorância gestada por décadas. Estamos tendo que nos posicionar e confrontar um projeto político que se aproveita da desinformação de muitos para perpetuar uma sociedade cada vez mais desigual. Um país que precisa voltar a combater a fome e o medo dela. Que precisa repensar e viabilizar a vida dos jovens, ao mesmo tempo que deve assegurar a dignidade dos aposentados. Um país que precisa parar de destruir suas florestas e rios, caso queria continuar a existir num futuro próximo. Um país que continua matando a torto e a direito a sua população negra e mestiça, nessa política de morte abertamente instaurada. 

Nesta semana, dois episódios ganharam significativa repercussão. O primeiro deles foi um artigo sem nenhum tipo de fundamentação científica, que defendia que negros podiam sim ser racistas contra brancos, validando a existência do racismo reverso. O outro foi uma fala infeliz de uma "nova celebridade" de reality show argumentando que a escravização de africanos nas Américas se deveu à sua maior eficiência, que por sua vez, era consequência da maior força física das populações negras que viviam na África.

Não me interessa tanto discutir as autorias dessas falas, que foram muito bem criticadas ao longo da semana. Mas sim chamar a atenção para o fato de ambas terem sido divulgadas em dois dos maiores veículos de comunicação do país, que, em tese, se apresentam como apoiadores da luta antirracista e combatentes das fake news. Qual é o ganho em propagar em rede nacional ideias e premissas falsas sobre a lógica do racismo e a justificação da escravização de africanos?

Muitos diriam que esse tipo de artigo e de fala geram polêmica, o que significa lucro para os dois veículos. E tais pessoas estão cobertas de razão. Mas é preciso ir além. Porque essa polêmica sempre tem endereço certo: a desqualificação dos movimentos negros e a diminuição do peso estrutural do racismo. Há uma liberdade outorgada em desqualificar a luta antirracista sob o manto de um debate democrático que nunca existiu.

Fake news sustentam o ideal de mundo ultraconservador, que dentre outras coisas, alimenta a estrutura racista que há tanto nos ordena. Propagá-las, sob qualquer pretexto, é abraçar uma terra plana, na qual a humanidade continua sendo enxergada de forma desigual e hierarquizada.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.