As fracassadas tentativas de SP de domesticar seus rios
12 de fevereiro de 2020Chuvas, enchentes, caos. As agruras vividas pelo paulistano nos últimos dias podem ser explicadas pela maneira desastrada como a cidade, ao longo de sua história, tentou domesticar uma de suas maiores riquezas naturais: os rios.
De acordo com o Mapa Hidrográfico do Município de São Paulo, levantamento da prefeitura, há 287 rios, riachos e córregos na cidade. Especialistas, como o geógrafo Luiz de Campos Júnior, do projeto Rios e Ruas, acreditam que o número é subestimado – se forem considerados todos os afluentes menores, a malha fluvial paulistana dobraria em quantidade.
A relação do paulistano com os rios sempre foi de amor e ódio. Autor da tese de doutorado Viver e Morrer em São Paulo, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o historiador Luís Soares de Camargo lembra que a própria escolha do local para a criação da vila que originou a cidade baseou-se na proximidade de dois cursos d'água: o Anhangabaú e o Tamanduateí. "Serviam para a pesca e para levar embora o esgoto e o lixo produzido", relata.
E foi esse segundo uso o causador da repugnância. "Tais rios, que eram tão importantes, passaram a ser fator de medo e apreensão por conta dos perigos que passaram a representar", afirma. "Assolada por epidemias, a população entendia que áreas pantanosas ou as várzeas úmidas dos rios eram um criadouro de doenças."
Teorias médicas vigentes acreditavam que o mau cheiro, ao entrar no corpo via respiração, causava doenças. "Assim, áreas úmidas eram consideradas insalubres. E as regiões secas, por sua vez, eram as mais saudáveis", explica Camargo.
"Não por outro motivo a elite sempre escolhia os altos para sua residência. No caso de São Paulo, Higienópolis – a cidade da higiene – se contrapunha ao insalubre Brás, na várzea do Tamanduateí", diz. O historiador aponta que foi essa "caça aos miasmas" o motivador das políticas de secagem das áreas pantanosas.
Foi por isso que, ainda me 1850, o Anhangabaú tornou-se o primeiro rio canalizado de São Paulo. "No outro lado da cidade, a várzea do Tamanduateí era outro local a ser 'domado'. As primeiras experiências ocorreram a partir de 1870, quando vários canais foram abertos para dar vazão às suas águas", relata Camargo.
"No início do século 20, o grande projeto de canalização do Tamanduateí estava sendo completado – e a área 'saneada' foi transformada em um grande parque, o Dom Pedro 2º. O Tamanduateí, é claro, foi retificado e canalizado."
Impermeabilização da cidade
Assim, São Paulo começava a matar seus rios. "A canalização dos rios é retrato de uma época em que o modelo de desenvolvimento achava que isso era uma solução de domínio da natureza", contextualiza o arquiteto e urbanista José Bueno, do projeto Rios e Ruas.
"O transbordamento, as cheias das várzeas, o mau cheiro, isso era visto como uma questão sanitária. A solução era a canalização, o soterramento, o afastamento dos rios. Criou-se um problema gravíssimo: a impermeabilização da cidade", aponta.
"O discurso dizia ser preciso crescer. A todo custo. E as banhadas áreas ao redor dos rios passaram a ser vistas como empecilhos ao desenvolvimento. "Para os empreendedores imobiliários, era tudo área perdida", diz o geógrafo Campos Júnior.
"A retificação dos nossos rios está vinculada à apropriação privada das várzeas. Os estudos começaram no fim do século 19, e as implementações ocorreram a partir do início do século 20. A diretriz geral de urbanização da cidade passou a ser fazer avenidas nos fundos de vale, muitas vezes canalizando cursos de água, como na avenidas 23 de Maio e 9 de Julho", contextualiza o arquiteto e urbanista Lucio Gomes Machado, professor da Universidade de São Paulo (USP).
"O que acontece agora: o rio retoma seu lugar com as enchentes. Quando foram feitos os projetos de retificação e canalização do Tietê e do Pinheiros, a cidade era muito pequena e não foi imaginado o enorme crescimento e consequente impermeabilização do solo."
O interesse era desenvolvimentista. "O que se pretendia na época era ganhar terras para loteamento, para fazer negócios. Permitir a expansão da cidade de uma maneira rápida e barata", explica o arquiteto e urbanista Valter Caldana, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Foi uma opção de ocupação das margens do rio, que, com o passar do tempo, se mostrou inadequada."
"São Paulo ocupou essas áreas sem nenhum controle. A retificação tornou esses rios com [capacidade de] captação muito menor do que seu leito original", avalia o arquiteto e urbanista Gilberto Belleza, professor do Mackenzie.
Convívio com a água
Machado avalia que o cenário deve piorar. "Prevê-se que o volume de chuvas em tempestades irá aumentar significativamente nos próximos anos em decorrência do contínuo aumento da impermeabilização e consequente aumento da temperatura da área urbana, as mudanças climáticas e a eliminação da vegetação", diagnostica. "São Paulo cresceu e foi planejada de costas para os rios. Sempre foram vistos como destino do esgoto, não tratado em sua maior parte."
Essa tentativa humana de controlar a natureza esbarra ainda em uma outra questão, conforme lembra a arquiteta e urbanista Regina Meyer, professora da USP.
"As águas dos rios, no leito natural, correm mais lentamente devido aos obstáculos naturais que encontram nas margens e no próprio fundo. Correm sobre terra e matas ciliares. Já aquelas que correm em peças tubulares de concreto, o fazem muito mais rapidamente", pontua. "As enchentes são resultado dessa aceleração do encontro com os grandes rios."
Para o ativista ambiental Adriano Sampaio, do projeto Existe Água em SP, é urgente a "renaturalização" dos rios para resolver o problema e dar mais qualidade de vida para os moradores de São Paulo. Ou seja, é preciso despoluí-los, deixá-los novamente ao ar livre (no caso daqueles que hoje correm em tubulações subterrâneas) e recuperar as matas ciliares.
Como lembra Campos Júnior, "o problema não foi ter pensado nesse modelo naquela época, mas é continuar pensando nisso hoje" – com obras que seguem impermeabilizando a cidade.
"A questão mais importante não é o que fizemos de errado, mas o que continuamos fazendo de errado", provoca ele. Os especialistas acreditam que a solução passaria por uma mudança de mentalidade, para que São Paulo pare de ser hidrofóbica, uma cidade que dá as costas à água, e se torne hidrofílica. "Precisamos de uma cidade que goste da água, que saiba conviver com a água", diz Campos Júnior.
"Tudo sempre tem salvação. Mas custará cada vez mais caro", diz Machado. "O grande problema é fazer com que os governantes acreditem na técnica e na ciência. E aí encontrar financiamento. Para água e esgoto é viável o capital privado porque há como cobrar. Mas para a drenagem urbana, não há como buscar capital privado."
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