As marcas dos alemães no Espírito Santo
Até meados do século 19, somente a faixa costeira do Espírito Santo havia sido ocupada. Os primeiros a desbravar a serra no interior do Estado foram imigrantes da região de Hunsrück na Alemanha. Eram 39 famílias, 26 luteranas e 13 católicas, que em 1847 chegaram ao Brasil com a expectativa de se fixar no Sul do país, onde o clima era semelhante ao de sua terra natal. Dom Pedro 2º, reconhecendo a necessidade de desenvolver o maciço central do Espírito Santo, ainda habitado por índios botocudos, resolveu enviar o grupo de 163 récem-chegados a essa área montanhosa e de clima ameno, para fundarem a colônia de Santa Isabel.
Desânimo inicial e conflito religioso
A princípio, cada família recebeu do governo uma parcela de 50 hectares de terra para o cultivo, além de uma ajuda de custo; não era uma doação, mas um empréstimo a ser pago a prazo. Após a demarcação das terras, cada família construiu uma primeira casa, de barro e folhas de palmeiras.
A grande distância entre as famílias, os perigos da mata, a dificuldade de adaptação à alimentação estranha (feijão preto, mandioca e caça), as cobras, a praga dos insetos e a falta de apoio por parte das autoridades contribuíram para o desânimo inicial. Nos primeiros dez anos, a mortandade chegou a superar a natalidade, as 38 famílias com 163 pessoas passaram para 39 famílias com 158 pessoas.
Além de todas as dificuldades iniciais, a convivência entre as famílias católicas e luteranas se deteriorou. A Vila de Viana, centro mais próximo da colônia de Santa Isabel, havia sido colonizada por católicos açorianos que se recusavam a negociar com os luteranos, dando exclusividade aos colonos católicos. O clima de hostilidade entre os grupos dividiu a colônia e retardou o desenvolvimento social das comunidades.
Os católicos, que inicialmente freqüentavam a igreja de Viana, se opunham à construção de uma igreja luterana. Os luteranos, resistindo à oposição, construíram sua primeira igreja em uma localidade um pouco mais acima de Santa Isabel, dando origem à atual Domingos Martins. Foi a primeira igreja luterana do Brasil.
Prosperidade e crescimento
Em 1858, o ex-oficial prussiano Adalberto Jahn assumiu a administração da colônia de Santa Isabel e os problemas econômicos de maior urgência começaram a ser resolvidos. Além disso, a reorganização social em torno da igreja e a criação de escolas trouxe certa estabilidade social. Logo vieram outros imigrantes atraídos pela promessa de terras e trabalho.
Em meados de 1860, a colônia de Santa Isabel já era constituída por 628 pessoas, imigrantes da mesma região dos pioneiros, bávaros e prussianos entre outros. Os colonos já colhiam dez mil arrobas de café e os alojamentos temporários foram substituídos por casas mais resistentes. A vida começou a melhorar.
Com a prosperidade, a tendência inicial se inverteu e a natalidade passou a superar a mortalidade, de tal forma que em 1912 a taxa anual de crescimento vegetativo entre os colonos era de 4% e a mortalidade, mínima. Famílias com 12 a 20 filhos eram comuns.
A colônia de Santa Isabel ainda se encontrava isolada na região serrana do Espírito Santo, quando uma nova leva de imigração deu início ao que mais tarde se tornaria um complexo de colônias européias bastante peculiar e relativamente desconhecido fora do Estado.
Santa Leopoldina – região de todas as Europas
Dom Pedro 2º, animado com o sucesso da primeira empreitada, permitiu o assentamento de novos grupos de imigrantes. Surgiram novas colônias imperiais, como a de Santa Leopoldina em 1857, onde chegaram principalmente imigrantes da Prússia, Saxônia, Hessen, Baden e Baviera, além de outras regiões da Alemanha.
Com a grande leva de alemães, vieram também famílias de luxemburgueses, austríacos do Tirol, holandeses e suíços, entre outros. Hoje, encravadas nas encostas das montanhas, próximas a rios e cachoeiras e muitas vezes ainda cercadas pela Mata Atlântica, o visitante encontra vilas com o nome de Tirol, Nova Holanda, Luxemburgo ou Suíça.
A imigração durou até 1879, quando só em Santa Leopoldina os colonos e seus descendentes já eram cerca de sete mil, número que subiu para 18 mil em 1912. Em 1960, calculava-se a existência de cerca de 73 mil teuto-capixabas, ou seja, 6% da população do Estado. Em 1980 esse número já estava por volta de 145 mil. Hoje estima-se que vivem no Espírito Santo aproximadamente 250 mil descendentes de imigrantes alemães.
A maior Pomerânia brasileira
O ano de 1859 inaugurou uma reestruturação étnica decisiva para as colônias, com a chegada em grande número de colonos da Pomerânia, na época uma província prussiana que conservava sua identidade cultural particular frente às diversas tentativas de dominação por parte de dinamarqueses, suecos e alemães. A Pomerânia compreendia uma estreita faixa entre o Mar Báltico e a Polônia, onde dominava a grande propriedade. A tradição ali era que somente um dos filhos herdasse a propriedade paterna, aos outros restava a opção de trabalhar em terras alheias ou emigrar.
Enquanto em outros estados brasileiros os pomeranos eram minoria entre os colonos alemães, no Espírito Santo aconteceu o contrário. De 1859 em diante os pomeranos, de confissão luterana, aportaram aos milhares e se tornaram maioria absoluta entre os colonos alemães. Assentados entre serras e matas, distante dos centros comerciais, os pomeranos foram submetidos a um isolamento que contribuiu para a preservação de sua cultura original.
Concentrados principalmente em Santa Maria de Jetibá e seus arredores, Pancas, Laranja da Terra, Vila Pavão, Santa Leopoldina e Domingos Martins, estima-se uma população de 120 mil pomeranos no Espírito Santo, a maior concentração em todo o Brasil.
"Pomerod" – língua dominante
Ignorados pelo poder público, sem acesso ao ensino do português, comunicando-se raramente com pessoas de fora da colônia e dependendo quase que exclusivamente da iniciativa das igrejas para a educação de seus filhos, os colonos não tiveram outra possibilidade senão continuar a falar seus dialetos. Se a princípio os diversos grupos alemães falavam cada qual seu dialeto particular, com o passar do tempo, o "pomerod", dialeto pomerano comum, acabou prevalecendo.
O professor Frederico Herdmann Seide, estudioso da imigração alemã no Espírito Santo, explica que havia uma divisão natural, o Rio Jucu, entre a colônia dos pomeranos e a dos hunsrückers. De acordo com o relato dos antigos e o registro das igrejas luteranas, se deduz que já a primeira geração de brasileiros desrespeitou essa linha divisória.
Os hunsrückers tiveram mais filhos (homens), enquanto havia mais mulheres entre os pomeranos jovens. Em uma festa da igreja, os rapazes do lado direito do rio encontraram-se com pomeranas do outro lado, no campo delas, e o resultado foi o esperado. A partir daí, muitos meninos e meninas da colônia dos hunsrückers passaram a falar o dialeto pomerano da mãe.
"Ik bin pommer" – a revalorização das raízes
A tendência externa de folclorizar os pomeranos não se baseia tanto na realidade local como em uma expectativa anacrônica daqueles que se encantam ou surpreendem com esse grupo étnico, ainda relativamente homogêneo, que já desde a Europa resistia à assimilação cultural.
O isolamento em que viviam os pomeranos, seja por vontade própria ou por força das circunstâncias, contribuiu não só para a sobrevivência das tradições e do dialeto. A falta de contato também contribuiu para o surgimento de especulações sobre os pomeranos, gerando algumas vezes desinformação prejudicial à comunidade.
O trabalho na lavoura em áreas desmatadas com pouca sombra, o uso de agrotóxicos e a exposição diária ao sol intenso causaram entre os descendentes um câncer de pele, o "câncer ecológico", que provocou mutilação e morte entre os pomeranos, fato que se tornou conhecido até internacionalmente. Uma iniciativa da Igreja Luterana e da Universidade Federal do Espírito Santo criou há 15 anos um programa de tratamento e prevenção que ajudou a resgatar a auto-estima local, abalada pela doença e sua repercussão na mídia.
Hoje, os descendentes dos colonos estão presentes em todas as esferas político-administrativas e intelectuais da região. A nova geração está cada vez mais consciente da necessidade de manutenção e valorização de uma identidade própria, viva e atual, portanto em transformação.
Além das famosas e inúmeras festas promovidas pelas cidades, com temas diversos, normalmente ligados à agricultura, existem uma rádio e um jornal pomeranos e já foi lançado um CD de rock pomerano e outro de concertina. Os grupos de música e dança folclóricas foram pioneiros nesse processo de revitalização. Entre os grupos musicais merecem destaque os Pomeranos de Melgaço, o Isarbohn de Laranja da Terra, a dupla de paródias Rodolfo e Fredolin de Vila Valério, além do grande número de tocadores de concertina, o principal instrumento pomerano.
O antropólogo e lingüista Ismael Tressmann planeja lançar, até o final do ano, um dicionário com aproximadamente 15 mil palavras pomeranas e informações históricas, geográficas e etmológicas. Há também um projeto para ensinar o "pomerod" nas escolas locais. Além disso, um dos rituais mais importantes entre os pomeranos, o casamento, volta a ser celebrado pelos jovens na forma tradicional.
Imigração alemã – influência no real e imaginário
São muitas a histórias que ficaram da colonização e que continuam sendo transmitidas principalmente pela tradição oral nas famílias. Uma das personagens mais conhecidas é a alemã Martha Wolkart, figura mitólogica que, no início do século passado, oscilando entre atos de bondade e tirania, protegia e aterrorizava a população local com seu bando de jagunços.
Dona Martha cuidava por um lado dos mais necessitados, enquanto ordenava assassinatos, oprimindo qualquer dissidência e dominando por completo a vida pública e econômica local através do medo.
Uma figura de destaque é Roberto Kautsky, pesquisador de renome internacional e profundo conhecedor da Mata Atlântica. Sua pesquisa contribuiu para o descobrimento de mais de 130 novos gêneros de bromélias, entre outras plantas e animais. A fábrica de chocolates Garoto também é produto de um imigrante alemão mais recente, Helmut Meyerfreund, que em 1929 começou sozinho com a fabricação de balas e bombons.
Texto originalmente publicado em 2004