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Au pair na Alemanha: quando o sonho vira pesadelo

21 de agosto de 2023

País tem cerca de 14 mil estrangeiros no programa, tipo de intercâmbio para jovens que, em troca, trabalham em casas de família como babás – mas eles nem sempre saem ganhando, como mostram relatos frequentes de abusos.

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Uma mulher jovem segura um bebê pequeno nos braços enquanto é cercada por outras duas crianças.
Ser au pair não significa só diversão; muitas vezes, é também trabalho duro.Foto: Oleksii Hrecheniuk/Zoonar/picture alliance

Parece uma ideia tão tentadora, a de lançar-se em uma aventura na Alemanha enquanto ainda se é jovem, aprendendo a língua e conhecendo a cultura do país, dando os passos rumo à própria independência, enquanto se cuida das crianças de uma simpática família – para depois, quem sabe, fazer da Alemanha uma nova pátria e ali começar a estudar e trabalhar.

Esse sonho se tornou realidade para muitas pessoas jovens vindas de fora. Mas alguns dão azar e têm experiências bem diferentes. É o caso da brasileira Ana da Silva (nome fictício).

A jovem, que quer ter a identidade preservada, chegou no ano passado à Alemanha e cursou em poucos meses – no sentido figurado – uma espécie de "intensivão" sobre o lado ruim do au pair, programa de intercâmbio cultural que conecta famílias em busca de alguém que os ajude a cuidar dos filhos com jovens interessados em fazer uma imersão cultural em um país estrangeiro.

À DW, Silva relata ter trabalhado muito além do limite de 30 horas semanais fixados pelo programa – frequentemente como doméstica, em vez de babá. A comida seria rigidamente racionada, quase sempre só lhe restava um pedaço de pão. E quando ela se queixou sobre as condições de trabalho, a resposta veio na forma de intimidação e ameaça de despejo.

Para Silva, o que ela viveu foi escravidão moderna. "Estive em cinco famílias, uma pior que a outra. A Alemanha não tem noção do que acontece com as au pairs aqui. É uma loucura. Se você é au pair, ninguém te ajuda." Ela diz que resolveu tornar a história pública para alertar outros jovens de que um país como a Alemanha também tem exploração. "E isso tem que acabar!"

A DW teve acesso a fotos e mensagens de texto das famílias que respaldam as acusações feitas por Silva.

O problema não é novo: volta e meia vêm à tona casos como o dela, onde a relação entre família e au pair, em vez de ser de reciprocidade e contrapartida – honrando o significado original da expressão em francês, que quer dizer "ao par" ou "igual" –, é de abuso de poder.

Jovem crianças diante de fonte com água em parquinho infantil
Cláusulas contratuais de au pairs, como limite de horas de trabalho, nem sempre são cumpridasFoto: Imago Images/ZUMA Press

Plataforma rebate: reclamações são "parcela ínfima"

Confrontada com os relatos de Silva sobre as famílias, a agência online que intermediou o processo dela reagiu por escrito: "Isso é claramente inaceitável e viola nossos termos de uso, com os quais todas as famílias e au pairs concordam ao se registrarem para usar a plataforma."

Ainda segundo a agência, histórias como as de Silva são comumente contadas, mas só representariam uma "parcela ínfima" do que "realmente acontece quando jovens vão para o exterior como au pairs". "Em milhares de estadias como au pair a cada ano – organizadas pela nossa plataforma e por outros serviços – jovens viajam ao exterior, assumem novas tarefas, conhecem um outro país e voltam para casa, após o tempo que passaram com a família hospedeira, com mais competências e conhecimentos."

Critérios nem sempre são cumpridos, reconhece associação

Representante de uma associação encarregada de manter padrões de qualidade no setor de au pair, Cordula Walter-Bolhöfer reconhece e lamenta que contratos na área nem sempre sejam cumpridos no que diz respeito aos critérios do programa: máximo de 30 horas de trabalho por semana, sendo ao menos um dia e meio de descanso; além de "mesada" de 280 Euros, acrescida de uma subvenção de 70 Euros por mês para frequentar um curso de alemão. 

A associação de Walter-Bolhöfer, a Gütegemeinschaft Au pair, representa 30 dentre as mais de 100 agências do ramo atuando na Alemanha. Seus associados exibem o selo RAL, que seria um indicativo de padrões mais elevados, como confiança e seriedade. O selo foi desenvolvido com o apoio do Ministério Federal para a Família, Idosos, Mulheres e Jovens, mas não é obrigatório. "Nossas agências sempre pressionam para que o foco do trabalho seja o cuidado com as crianças e para que afazeres domésticos sejam divididos como se aquela pessoa fosse alguém da família. Au pairs não devem ser domésticas baratas e sim cuidar das crianças acima de tudo."

A empresária diz conhecer os maus nomes no ramo. Uma agência de má reputação teria tentado se candidatar à associação, segundo ela. "Mas depois que enviei todos os critérios de admissão, eles sumiram." Ela também receberia solicitações frequentes perguntando sobre a existência de uma lista de famílias problemáticas – a organização, porém, declina pedidos do tipo, sob o argumento de que os dados são protegidos por lei.

Agências não são mais obrigadas a passar por licenciamento

Se hoje há famílias e agências no mercado mais interessadas em dinheiro do que no bem-estar das au pairs, isso tem muito a ver com o fim da obrigatoriedade de licenciamento para agências do ramo, em 2002. Desde então, basta uma simples autorização de abertura da empresa junto ao fisco.

Como a brasileira Ana da Silva, muitas jovens da Colômbia, Indonésia e Kirguistão – países campeões de visto no programa, segundo dados de 2022 – têm optado, desde a mudança da lei, pelo caminho mais fácil e buscam uma família por conta própria, pelo Facebook ou em plataformas especializadas. Bastam alguns cliques para encontrar o lar aparentemente perfeito, sem gastar quase nenhum dinheiro.

"Por um lado, elas têm que pagar as agências nos seus países, por outro lado há uma certa ingenuidade. Muitas passam o dia inteiro nas redes sociais, e quando elas veem no Facebook, por exemplo, fotos de uma família simpática com crianças simpáticas, muitas acham que aquilo é a verdade", explica Cordula Walter-Bolhöfer.

Mulher loira em um sofá lê livro para duas crianças, uma deitada com ela e outra em pé
Programa de au pair: agências vendem sonho de aventura na Alemanha conhecendo a língua e a cultura do paísFoto: VisualEyze/picture alliance

Pela lei alemã, porém, a intermediação de au pairs continua a ser uma intermediação de mão de obra trabalhista, cabendo a fiscalização à Agência Federal de Emprego (Bundesagentur für Arbeit). 

Casos de exploração não são exceção, diz outra empresária

Quando os primeiros problemas aparecem, as au pairs que recorreram a plataformas digitais não têm a quem pedir ajuda. É quando a situação não tem mais jeito que toca o celular de Susanne Flegel. Ela dirige uma agência própria há mais de 17 anos, mas afirma que também entra em campo quando as jovens se desesperam, chegando até mesmo a abrigá-las sob seu teto.

"Houve um tempo em que recebíamos várias ligações diariamente. O meio político diz que são casos isolados. Não são. Quando sondamos com diferentes au pairs, constatamos que a exploração ainda é comum. Mas sobre isso não há números nem estatísticas."

Flegal afirma nunca ter ouvido falar em casos de empresários que tiveram a licença comercial caçada por relatos de abusos de au pairs. Segundo ela, as taxas cobradas pelas agências pela intermediação de cuidadoras de crianças pelo programa variam entre 200 e mil euros cada.

A empresária relata histórias de fraude, como a de um casal que vivia às margens do lago de Constança que deixou de remunerar sete au pairs e acabou condenado a pagar uma multa. Há ainda episódios de coerção sexual, trabalho duro em apartamentos de férias, horas extras sem fim e restrições alimentares, em que frutas eram reservadas apenas às crianças e os alimentos na geladeira eram cuidadosamente rotulados com os nomes da família.

"Há agências verdadeiramente criminosas na Alemanha, porque elas não são controladas. Passam a perna nas famílias hospedeiras, dão golpes, mentem. As portas ficam abertas para o abuso."

Mesmo agências sérias, segundo a empresária, tendem a abafar casos escandalosos para evitar prejudicar os negócios. E mesmo em casos de polícia, as jovens, muitas vezes com parcos conhecimentos da língua, tendem a ficar em situação de desvantagem perante a família.

Na Holanda, abusos estão sujeitos a multa

A Holanda reintroduziu, por esses motivos, a obrigatoriedade do processo de licenciamento e a responsabilização das agências – se algo dá errado, elas arcam com polpudas multas. Na Alemanha, porém, a política resiste a uma abordagem mais dura.

Susanne Flegel não se dá por satisfeita e demanda que os processos tenham que obrigatoriamente passar por uma agência. "E essas agências precisam ser fiscalizadas adequadamente. Ou seja: precisam se licenciar. A obrigatoriedade da agência para famílias é o que nós demandamos há anos. E mesmo assim têm que ser realizadas visitas criteriosas e não anunciadas as essas famílias."