Cotidiano extraordinário
15 de outubro de 2011A fotografia é a forma de arte mais praticada na vida cotidiana. Quase todo mundo tem um telefone celular que pode fotografar, e as câmeras com qualidade profissional estão cada vez mais baratas e acessíveis. Como arte, porém, a fotografia não é só capturar o belo ou registrar o momento, mas também olhar além do que os olhos podem ver.
Essa é a mágica da exposição Friedrich Seidenstücker, de hipopótamos e outros humanos – Fotografias de 1925-1958, que está em cartaz em Berlim. Essa é a primeira grande retrospectiva do artista tido como um típico fotógrafo berlinense, que com seu trabalho capturou a essência da capital alemã, principalmente nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial.
Nascido na cidade de Unna, Seidenstücker mudou-se para Berlim em 1904, depois de estudar engenharia. No ano seguinte ele ingressou no curso de escultura na Academia de Belas Artes. Depois de uma breve participação na Primeira Guerra, retornou a Berlim, onde em 1923 terminou seus estudos e conseguiu uma permissão para fotografar no zoológico. Em 1927 ele se deu conta que não podia viver de escultura e passou a se dedicar exclusivamente à fotografia.
De hipopótamos...
Seidenstücker nunca saía de casa sem a câmera. Ele passava o dia perambulando pelas ruas da efervescente Berlim em busca de cenas comuns e imagens extraordinárias. Suas fotos conseguem ao mesmo tempo ser o registro da época que foram tiradas e também um retrato de como emoções, sentimentos e sensações permanecem os mesmos ao longo das décadas.
Seu universo transita particularmente entre o cotidiano dos habitantes de Berlim e as horas e horas que passava no zoológico da cidade. Esse foi o período mais fértil e bem-sucedido de seu trabalho. Entre 1928 e 1937, suas fotografias ilustravam as páginas de diversas das mais importantes revistas da Alemanha.
A acessibilidade é um dos pontos chaves do trabalho do fotógrafo, o que pode ser visto nas famosas fotos de animais e humanos no jardim zoológico de Berlim. Além de um mero espectador de animais, Seidenstücker via o zôo como um lugar onde humanos e animais se encontravam num ambiente urbano.
Esse contato foi mostrado dos mais diversos ângulos e sempre com muita ironia. O que diferencia essas imagens é que muitas vezes ele toma o ponto de vista dos animais. Essa escolha mostra o aspecto humano de certos bichos, colocando a plateia atrás das grades, como as bestas a serem observadas.
... e outros humanos
O olhar de Seidenstücker era como uma câmera ambulante. Seu trabalho reflete a espontaneidade da situação e do momento. Podemos ver a vivacidade da cidade refletida nos olhos de crianças que brincam pelas ruas, de vendedores ambulantes e de jovens garotas. A complexidade dessa malha urbana está também na visão humana e calorosa com a qual o fotógrafo retrata desempregados, mendigos e problemas sociais.
A fotografia de rua como gênero perdeu o sentido para o artista durante os anos do nazismo. Esse é um fato que se sabe hoje, mas que de maneira indireta ele retrata numa das fotos da exposição, na qual se vê uma menina de aproximadamente cinco anos de idade segurando uma bandeira com a suástica. A perda da inocência e o retrato de um dia a dia onde a leveza e a autoironia parecem quase impossíveis.
As consequências dessa tragédia podem ser vistas nas fotos da cidade destruída, feitas a partir de 1943. A vida e a morte entre ruínas viraram temas importantes em seu trabalho. Diferentemente de muitos de seus colegas, que retrataram o período com choque e desânimo, Seidenstücker nunca perdeu a curiosidade e o otimismo característicos de seu trabalho. Entre jaulas destruídas e animais mortos no zoológico, ruínas e destruição, ainda podemos ver crianças brincando e pessoas reconstruindo o passado para poder viver o futuro.
Privado e público
O apreço por mulheres atléticas faz parte do trabalho de Seidenstücker. Algumas imagens lembram a beleza dos corpos retratados por Leni Riefenstahl, mas quase como fazendo piada sobre como a beleza pode ser leve e divertida. As fotos coloridas de mulheres nuas feitas nos anos 40 unem esses dois aspectos, a beleza e a leveza, junto com uma malícia descontraída. Feitas de maneira privada, essas fotos são como um jogo erótico entre o fotógrafo e suas namoradas.
Os arredores de Berlim também foram retratados na série de paisagens que compõem a retrospectiva. As fotos de lagos e pinheiros fugiam da idealização e do romantismo para um olhar objetivo. Apesar de funcionar quase como o oposto de suas fotos urbanas, o mesmo olhar pode ser percebido e apreciado. Mesmo quando foca a poluição e o lixo que faziam parte da paisagem, o fotógrafo mostra um apreço por suas formas e consequências, merecendo a mesma atenção de tudo que passou por sua lente.
Nos anos 50 o trabalho de Seidenstücker perdeu a popularidade, mas mesmo assim ele nunca deixou de fotografar. Em 1962, na comemoração do seu octagésimo aniversário, o fotógrafo ganhou sua primeira exposição em Berlim. A única que ele pode presenciar. Seidenstücker morreu em 1966 num asilo, na cidade que como poucos ele soube retratar com verdade e otimismo.
As fotos de Friedrich Seidenstücker podem ser vistas na Berlinische Galerie até o dia 06 de fevereiro de 2012.
Texto: Marco Sanchez
Revisão: Alexandre Schossler