Trópicos
16 de setembro de 2008"Visões a partir do centro do globo" diretamente do centro de Berlim. Um paradoxo. Porém, certamente distinto do "reino de paradoxos" que, segundo os coordenadores do superprojeto que acaba de ser inaugurado na capital alemã, permeia a área situada entre os Trópicos de Câncer e Capricórnio. Os trópicos, uma região do planeta onde "a natureza é mais rica e as pessoas, do ponto de vista econômico, mais pobres".
O projeto tem como cartão de vista uma mostra de artes plásticas com 200 obras, expostas no nobre espaço Martin-Gropius-Bau, em Berlim. Do programa paralelo, fazem parte debates (entre outros no Instituto Ibero-Americano), teatro (Hebbel am Ufer) e um ciclo de cinema (Kino Arsenal). São produções européias acerca dos trópicos ou obras de artistas "tropicais", ou seja, nascidos nas regiões em questão.
Nem tão tristes assim?
A exposição, que já passou em formato mais reduzido pelo Rio de Janeiro e por Brasília, pretende questionar a suposta "tristeza" dos trópicos, imortalizada por um Lévi-Strauss que via a Baía de Guanabara como "raízes de dentes perdidas nos quatro cantos de uma boca desdentada".
Trata-se de uma tentativa de "re-estetizar" os trópicos, sugerem os curadores. Uma forma de contrapor "aos poderosos discursos políticos e econômicos o peso cultural dos espaços naturais" em questão. Espaço naturais, diga-se de passagem, que há muito povoam o imaginário europeu.
Imaginário x real
Para os habitantes das regiões mais frias, que acreditam serem mais "civilizados" que o resto do planeta, os quentes trópicos sempre funcionaram como terra libertária, onde é possível vivenciar a alforria da vida regrada. Imagens que costumam funcionar, pelo menos à distância.
O choque da discrepância entre o imaginário e o real, porém, não é raro, como bem lembra o filósofo Vilém Flusser no capítulo A natureza brasileira de seu Bondenlos: Uma autobriografia filosófica. Flusser conta como chegou ao Brasil em 1941 de posse "da idéia comum na Europa a respeito do paraíso tropical. A decepção foi terrível".
Exuberante e ameaçadora
A exuberante natureza presente nas descrições de europeus que documentaram suas viagens pelos "trópicos" – dos quais Alexander von Humboldt talvez seja o mais célebre – povoa o sonho do estrangeiro, enquanto os "nativos tropicais" procuram, ainda hoje, se proteger dessa mesma natureza. Talvez porque a tradição do bandeirante que adentrava a mata densa com um facão na mão ainda esteja ancorada nos nossos imaginários "tropicais" – vide uma literatura cujos marcos são grandes sertões em guerra.
Da mesma forma que o europeu se expõe ao sol, enquanto os habitantes dos trópicos buscam a sombra, costumam ser também distintas as abordagens de artistas e pensadores de cada região do planeta em relação à geografia e à cultura "tropicais". Se é que se pode falar em "cultura tropical", uma vez que esse "meio do globo" é absolutamente díspar, incluindo o Brasil, o maior país tropical do mundo, ao lado de diversas regiões da América do Sul, Áfica e Ásia.
À sombra de Humboldt
Por trás deste desejo súbito (e ao mesmo tempo antigo) da Alemanha pelos trópicos está a proposta de criação de um "Fórum Humboldt", que deverá funcionar como uma plataforma para culturas não-européias. "O mundo todo congregado no centro de Berlim", reza a ambiciosa máxima.
Este fórum está sendo criado para povoar o Palácio de Berlim – edifício barroco situado no centro da cidade, que depois de ter sido destruído durante a Segunda Guerra foi demolido pelo governo da então Alemanha Oriental. Depois de uma longuíssima polêmica entre os defensores da reconstrução do antigo prédio monumental na Schlossplatz, aqueles que viam no espaço físico um parque ideal e os que não gostariam de ver o Palast der Republik, ícone do regime comunista, demolido, a decisão foi, enfim, tomada.
O Fórum Humboldt, cujo "ensaio" é o projeto Trópicos, terá sua sede ali e envolverá arte clássica e contemporânea, além de eventos ligados à literatura, música, teatro e cinema. Um momento em que o olhar europeu, que historicamente já viu o "exótico" e o "ouro" nos trópicos, se propõe a deixar os óculos eurocêntricos de lado?
Crossover
: ontem e hojeLonge do "lugar onde o paraíso e o inferno vivem lado a lado", que é como os trópicos são definidos por Alfons Hug, diretor do Instituto Goethe do Rio de Janeiro e curador de arte contemporânea dentro da mostra berlinense, a população da capital alemã poderá discutir e refletir sobre os trópicos até janeiro de 2009.
Embaralhando épocas (obras do Museu Etnológico de Berlim ao lado das produções de artistas contemporâneos), a curadoria segue uma tendência atual rotulada pela mídia de crossover: a de misturar o novo ao antigo, a fim de que os dois "dialoguem". A última documenta de Kassel fez isso, exposições atuais em grandes museus mundo afora também vêm adotando a prática.
Confundir para esclarecer
A exposição em Berlim divide-se em sete grupos temáticos: Após o dilúvio (natureza e paisagem), A vida breve (imagens humanas, retratos, ancestrais), A flecha quebrada (Poder e conflitos), A cor dos pássaros (cor e abstração), O riso proibido (sons e música), Barroco tropical e O drama urbano.
Espera-se que a miscelânea de épocas da história da arte consiga realmente fazer valer a máxima de Tom Zé (além de veterano do Tropicalismo, autor de Tropicália Lenta Luta): "Explicar para confundir e confundir para esclarecer". E não entre para a história somente como mais uma oferta de panis et circenses para o público.
A mostra Trópicos. Visão do centro do globo fica aberta ao público no Martin-Gropius-Bau, em Berlim, até o dia 5 de janeiro de 2009.