Bibliothek: A noite em que acabei na casa de Heiner Müller
10 de outubro de 2017Eu ainda me lembro daquele fim de semana em São Paulo em 1997. Fui ao Memorial da América Latina com uma edição da Folha de S. Paulo que trazia um artigo sobre o trabalho do dramaturgo e poeta alemão Heiner Müller (1929-1995). Fui até lá para ler, coisa de sentimentalismo meu. Era uma obra grande de Oscar Niemeyer em São Paulo, era um memorial à América Latina. É óbvio que era uma ideia estapafúrdia. No sol que esturricava aquele deserto de concreto, com umas míseras palmeiras espalhadas, tive que buscar sombra sob a passarela que ligava a estação de metrô ao complexo arquitetônico. Li o artigo e me fui.
Müller talvez seja o segundo dramaturgo alemão mais conhecido no Brasil e no mundo depois de Bertolt Brecht. Muitos o veem como um continuador do trabalho de Brecht. Foi o dramaturgo mais importante da Alemanha Oriental, sem dúvida, ainda que sua relação com o governo tenha sido sempre conflituosa e ele tenha tido peças proibidas e sido expulso da União de Escritores. No entanto, teve peças encenadas nos teatros mais importantes do país, como o Maxim-Gorki-Theater, o Volksbühne e o Berliner Ensemble, onde no próximo dia 24 de outubro, por exemplo, ocorre uma palestra de Frank Raddatz sobre o caráter inovativo da dramaturgia de Müller.
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Seu trabalho é bastante diferente do de seu predecessor. Sua escrita é fragmentária, sem grandes direções de cena, muitas vezes limitando-se a dar simplesmente os diálogos. Isso dá grande liberdade aos encenadores. Uma de minhas peças favoritas é sua Medeamaterial, de 1982, publicada com outros dois textos curtos, Verkommenes Ufer e Landschaft mit Argonauten. Nela, Müller apresenta sua versão do grande mito grego tornado imortal por Eurípides. Este diálogo com o teatro grego clássico perpassa todo o seu trabalho, mas assim como Brecht, Müller dedicou invectivas poderosas contra a Alemanha do pós-guerra e seu passado nazista.
Mas a coluna desta semana prometia, desde seu título, uma pequena anedota pessoal. Foi há duas semanas. Eu me encontrava em Kreuzberg no boteco clássico dos homossexuais do bairro, o Möbel Olfe. Com esta nova prática algo assustadora do Facebook de avisar os conectados sobre quem "está por perto", acabei trocando mensagens com um amigo que estava fora de Berlim há algum tempo, mas visitava a cidade naquele momento. Ele disse que estava tomando um vinho com amigos em um apartamento não muito longe dali, e para lá eu fui.
Na mesa grande, várias pessoas conversavam, bebericavam seu vinho. Comecei uma conversa com a senhora que estava a meu lado. Havia um livro de Müller sobre a mesa. Mencionei como adorava seu trabalho. O rapaz ao lado então disse: "Bem, você está na casa dele." Era o último apartamento em que ele vivera antes de sua morte algo prematura em 1995. A senhora com quem eu conversava distraidamente era sua viúva. A menina do outro lado da mesa era sua filha.
Eu tenho, como disse no começo do texto, estes sentimentalismos. Visito com certa frequência tanto Brecht quanto Müller em seus túmulos. Gosto de passar diante da casa em que Franz Kafka viveu por um tempo em Berlim. Estar ali na casa em que Müller escreveu seus últimos textos me emocionou. O problema é que passei a balbuciar feito um adolescente dali em diante na conversa.
Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.