Bibliothek: Escritores germânicos e a sexualidade desviante
2 de janeiro de 2018O novo ano começa com a lista de afazeres para os próximos meses, e alguns deles são verdadeiros desafios. No momento, organizo duas antologias para publicação no Brasil. A primeira, em colaboração com a escritora carioca Tatiana Pequeno, é uma reunião da escrita queer nacional para a editora Azougue, capitaneada por Sergio Cohn.
Não é apenas um campo minado tanto teórica quanto politicamente. Trata-se de um intenso trabalho de pesquisa para descobrir autores que, mesmo que excelentes, possam ter caído por entre as frestas da atenção crítica pelos mais variados motivos. Aqueles que até pouco tempo atrás não podíamos afirmar ser ou não, e o quê. Mário de Andrade, por exemplo. O que fazer em relação a Ana Cristina Cesar? E os casos dos grandes corajosos em face aos perigos, como Lúcio Cardoso e Roberto Piva?
Mas o assunto desta coluna, dedicada à literatura alemã, passa por outra antologia. Pois, para a Companhia das Letras, estou enfrentando o mesmo desafio em âmbito internacional. De Safo na Grécia antiga até os poetas do século 20, passando por Catulo na Roma dos tempos republicanos, poucas décadas antes de Cristo, ou por Abū Nuwās na Bagdá do século 9. Aqui chego a meu ponto: minha surpresa ao perceber que a Alemanha, um país marcado pela história de libertinagem na República de Weimar, tenha uma história literária tão tortuosa quanto o Brasil nesse assunto, com cochichos, rumores e silêncios.
Na prosa, há uma fartura maior. Na língua alemã, podemos falar de Annemarie Schwarzenbach, Hubert Fichte, Fritz J. Raddatz, Sybille Bedford, Ronald M. Schernikau, sem mencionar a família mais gay da Alemanha, os Mann: do neurótico caso de armário que foi Thomas Mann aos seus filhos, Erika, Klaus & Gollo. Na dramaturgia, há Rainer Werner Fassbinder e Hans Henny Jahnn.
Já na poesia, que será o cerne da antologia, as coisas se tornam mais complicadas. Fiz um exercício comigo mesmo. Disse: "poeta gay alemão” e esperei para ver que nomes saíam da minha cabeça. Os dois únicos casos espontâneos (e aposto que você provavelmente jamais leu estes dois nomes na mesma frase) foram Stefan George e Rio Reiser.
Para chegar a outros, foram necessárias pesquisa e conversas com escritores alemães. Para descobrir poetas talvez obscuros, e para descobrir que certos poetas mais conhecidos eram na verdade homossexuais. Um caso é o de Horst Bienek, um poeta de que gosto imensamente, de quem já traduzi poemas, e que jamais soube ser homossexual. Não conheço sua obra completa para afirmar ou negar que ele jamais tenha tematizado isso. Precisarei de tempo para descobrir.
Outro caso marcante é o de Oskar Pastior, talvez o poeta queer mais importante da língua depois de Stefan George. Traduzir seu trabalho experimental será enlouquecedor. A prêmio Nobel de língua alemã Herta Müller, nascida na Romênia assim como o amigo Oskar Pastior, publicou um livro em que o autor comparece e é central, intitulado Atemschaukel (2009). Müller trabalhou com Pastior na obra e o terminou sozinha após a morte dele, em 2006. O livro acabaria em um dos escândalos político-literários do novo século, quando foi descoberto que Pastior teria sido um informante para o serviço secreto romeno. O livro trata justamente das deportações na Romênia para os gulags soviéticos.
Encerro com dois poetas berlinenses que descobri em meio à minha pesquisa: Christa Reinig (1926-2008) e Detlev Meyer (1950-1999). Aceitam o desafio de tentar traduzir os dois poemas abaixo? Eu publico minhas traduções na semana que vem.
"Mein Freund ist schön" - Detlev Meyer
Mein Freund ist schön
wie ein Hawaii-Toast und
klug wie ein Schnürsenkel.
Ich bin sehr glücklich
mit meinem Freund.
Als ich ihn traf,
war er ein Sportstudio;
nun führt er das Leben
eines Sofakissens.
Ich bin sehr glücklich
mit meinem Freund.
Ich halte auf ihm
meine Siesta.
§
"Die eine und die andere Wange" - Christa Reinig
Hier hast du meine linke Wange.
Schlag zu.
Hier hast du meine rechte Wange.
Schlag zu.
Hier hast du mein Kinn.
Schlag zu.
Ach, du kannst nicht mehr
zuschlagen?
Schade.
Dann zieh ich das Messer
aus deinem Bauch.
Es wird noch gebraucht.
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Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.
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