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"Bolsonaro escolheu o confronto com a sociedade"

18 de fevereiro de 2020

Cofundador do Greenpeace no Brasil diz que sociedade civil vive momento mais crítico desde a redemocratização e que governo coloca em xeque o meio ambiente "em nome de um desenvolvimentismo que já se mostrou equivocado".

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Protesto do Greenpeace diante do Palácio do Planalto contra resposta do governo Bolsonaro a manchas de óleo e queimadas
Protesto do Greenpeace diante do Palácio do Planalto contra resposta do governo Bolsonaro a manchas de óleo e queimadasFoto: Greenpeace/C. Braga

Um dos fundadores do Greenpeace no Brasil, Paulo Adário vem lutando contra o que chama de "grande ofensiva" liderada pelo governo Jair Bolsonaro contra o patrimônio ambiental no país.

Como exemplo, ele cita a Medida Provisória 901, que pode, entre outros, liberar fazendeiros para desmatar até 50% de terras na Amazônia (o Código Florestal permite 20%), além do Projeto de Lei 191, que viabiliza a mineração em terras indígenas.

O Greenpeace chegou ao Brasil em 1992, e esta é a primeira vez desde então que a organização é recorrentemente atacada por representantes do governo quando questionados sobre políticas ambientais, das queimadas na Amazônia ao vazamento de petróleo no Nordeste. 

Na última semana, Bolsonaro chamou a ONG de "lixo" ao ser questionado por jornalistas sobre a efetividade do novo Conselho da Amazônia no combate ao desmatamento, criticado pelo Greenpeace.

A ONG, fundada no Canadá em 1971, foi uma das responsáveis no Brasil pela moratória da soja, um compromisso firmado entre indústria, governos e entidades para banir o comércio do grão produzido em áreas desmatadas na Amazônia.

Nascido numa família de pecuaristas em Bananal, São Paulo, região do Vale do Paraíba, Adário diz ter visto na infância o efeito destruidor do gado sobre a floresta. Esse teria sido um dos motivos para que ele virasse um ativista em defesa da Amazônia desde que a ONG chegou ao país, às vésperas da Eco-92.

"O governo Bolsonaro é parecido com a destruição de uma barragem da Vale. Leva tudo", afirma Adário em entrevista à DW Brasil. Ele afirma que o Greenpeace não escolheu atacar Bolsonaro. "Foi o governo Bolsonaro que escolheu o confronto com a sociedade brasileira", analisa.

DW Brasil: Por que o Greenpeace decidiu se instalar no Brasil, em 1992?

Paulo Adário: A abertura do escritório no Brasil fazia parte da estratégia de aumentar a presença na América Latina. Estava claro que os países em desenvolvimento eram os que mais sofriam com os efeitos tóxicos das grandes indústrias, que tiravam os recursos naturais e deixavam seu lixo. Até hoje isso ainda acontece.

Em 1992, Fernando Collor foi o primeiro presidente eleito pelas urnas, o clima era de redemocratização. O movimento ambientalista ganha músculo no Brasil a partir da Eco-92 e a partir da democracia. A luta pela defesa do meio ambiente está diretamente ligada à luta pela democracia e à conquista de direitos.

Agora, neste momento, em que temos um governo que cada vez mais ameaça a democracia, fica patente que esse governo também ameaça o meio ambiente, que sua visão de desenvolvimento é uma uma imensa ameaça ao meio ambiente.

O Greenpeace sempre foi uma organização apolítica e sempre defendeu isso com unhas e dentes. E é fundamental demarcar o território do Greenpeace como o território da luta ambiental. Num cenário como o do Brasil, a discussão da política passa pela questão ambiental cada vez mais. Os direitos da sociedade, dos povos indígenas, das vítimas do avanço sob os recursos naturais, estão diretamente ligados à democracia.

Um governo como o de Bolsonaro, ao criar como plataforma central o combate ao direito dos povos indígenas e o combate aos processos de proteção da Amazônia, ele se torna uma ameaça a tudo o que foi conquistado com esforço da sociedade brasileira. Esse processo está em xeque agora. São situações vistas em países como Hungria, Polônia, onde a extrema direita está avançando. Isso é assustador.

Como tem sido a relação com os governos desde a chegada do Greenpeace ao Brasil?

O Greenpeace nasceu no Canadá lutando contra a bomba atômica. A luta contra testes atômicos feitos por norte-americanos e, depois, por franceses. Mais tarde, foi se tornando uma entidade marcadamente ambientalista, entrando em processo de enfrentamento contra as grandes empresas que provocam a destruição ambiental. Mas o começo foi de mobilização da sociedade para pressionar governos.

À medida que vamos amadurecendo, vamos nos dando conta de que o papel das empresas na destruição ambiental é muito relevante, e que esse papel tem que ser exposto para sociedade para que os consumidores entrem no jogo de pressão para pedir mudanças. Foi a guinada do movimento político para uma campanha de pressão sobre o mercado.

Ao Brasil, a gente chegou sem nenhuma relação com governo. Naquele início, a gente queria chamar atenção para o fato de que as grandes corporações estavam tentando instrumentalizar a Eco-92. Havia uma pressão para que a conferência caminhasse de acordo com os objetivos das grandes corporações, e não do meio ambiente.

Nos países em desenvolvimento, o ritmo da economia é ditado pelo governo federal. Os empresários investem graças a recursos públicos que eles obtêm via BNDES, por exemplo, e desfrutam das benesses do poder público. É assim desde que chegou a primeira nau portuguesa. O país se desenvolveu como exportador de matéria-prima barata para o exterior, com mão de obra escrava, e continua no mesmo caminho.

É a primeira vez que o confronto é direto com o governo, como vem ocorrendo com Bolsonaro?

O Greenpeace não escolheu atacar o governo Bolsonaro. O governo Bolsonaro foi democraticamente eleito pela maioria dos eleitores, de acordo com a legislação. O que nós somos contra é a maneira como o governo brasileiro está tratando a questão ambiental, que é ligada à democracia.

O governo Bolsonaro escolheu a linha do confronto com a sociedade brasileira na questão ambiental, na questão dos povos indígenas, na questão dos direitos humanos. E essa escolha não foi feita pela sociedade civil nem pelo Greenpeace, foi feita pelo governo. Ele escolheu o confronto.

E essa escolha dele incluiu o Greenpeace, que é uma ONG bastante ativa, ativista, que nunca escondeu que a agenda é de proteção ambiental particularmente da Amazônia, que tem um papel central no futuro do planeta.

É um governo que ignora os povos indígenas – que está na Constituição brasileira – e que coloca em xeque a maior floresta tropical do planeta em nome de um desenvolvimentismo que já se mostrou completamente equivocado em 500 anos de história do Brasil. Esse modelo resultou na destruição completa da Mata Atlântica, e o país continua, até hoje, dependente de exportação de matéria-prima depois de destruir essa floresta.

No processo da democracia, a pressão sobre a Amazônia passou a ter medidas de contenção dadas pelo debate democrático, com aumento do peso da opinião pública, da participação de pesquisadores, da eficácia do Estado em tratar grandes aumentos. Isso foi conquista da sociedade brasileira na luta contra a ditadura.

Parece que a sociedade brasileira está meio atordoada, adormecida desde a eleição de Bolsonaro. Mas, na verdade, há um crescente aumento da resistência a esse processo de demolição do arcabouço democrático e da estrutura da legislação ambiental, dos direitos dos povos indígenas. Os povos indígenas, aliás, estão cada vez mais mobilizados, assumiram um vanguardismo. E o movimento ambiental também está num processo de resistência muito forte.

Nesses anos de atuação do Greenpeace no Brasil houve parcerias com resultados concretos, como a moratória da soja, iniciada em 2006, que envolveu o governo e a indústria. Isso também está em xeque?

A parceria começou com a indústria, na verdade. Houve uma pressão dos consumidores internacionais dizendo que não queriam mais comprar soja que vinha de área desmatada, as traders [de commodities] começaram a impor uma barreira, e o governo se juntou dois anos depois. Não houve envolvimento do governo inicialmente, e era governo Lula.

Só dois anos depois, em 2008, o governo se juntou à moratória e virou parceiro, colocou o Inpe e o Banco do Brasil, que passou a adotar critérios de financiamento que respeitassem a moratória da soja.

O governo Bolsonaro não dialoga com as grandes traders. Ele foi um deputado de pouquíssima projeção no Congresso, e a política dele é parecida com essa trajetória dele. Ele fala com alguns produtores de soja, mas não necessariamente dialoga com a indústria.

Há uma pressão de produtores pelo fim da moratória. Pressão não de todos, mas particularmente daqueles que não conseguem garantir que sua produção não esteja envolvida com desmatamento. Muitos deles, inclusive, fizeram desmatamento ilegal, sem respeito ao Código Florestal.

Tem uma pressão de produtores que representam menos de 2% dos grãos de soja produzidos na Amazônia. Estão fazendo pressão na Casa Civil. Isso soa como música nos ouvidos do presidente, mas ele não pode fazer nada porque a moratória não foi criada pelo governo, não é um órgão governamental. A moratória é um acordo de cavalheiros entre indústria, consumidores nacionais e internacionais com a vigilância da sociedade civil, que participou, contribui com as análises, sistema de monitoramento e mapeamento.

O governo pode criar instrumentos de pressão para as empresas recuarem, mas se elas recuarem será um desastre para elas, além do desastre para a Amazônia. As empresas se comprometeram internacionalmente, há muitos anos, a não venderem soja envolvida com desmatamento. Muitas traders se comprometeram a não exportar mais produtos envolvidos com desmatamento a partir de 2020, que é esse ano. Chegou 2020, e elas ainda não conseguiram eliminar.

Na sua avaliação, este é o momento mais crítico para a sociedade civil desde a redemocratização?

Definitivamente. A gente nunca teve uma combinação de fatores tão negativos para os diversos setores importantes para a sociedade quanto agora. Podia haver governo conservador de um lado, mas havia preocupações. No regime militar, houve um processo grande de criação de unidades de conservação na Amazônia. O próprio Médici criou parques, o Geisel demarcou territórios indígenas.

O assustador é que temos agora um conjunto de ataques para todos os lados ao mesmo tempo – moral, religioso, cultura, direitos básicos da sociedade. É  uma agenda de extrema direita, o que é uma novidade no Brasil, os brasileiros não conheciam isso. Os brasileiros estão tendo uma certa dificuldade em priorizar qual segmento a gente tem que enfrentar primeiro. 

No caso ambiental, o Congresso entrou nessa briga também, o que também é uma novidade. Sempre houve uma influência forte do agronegócio, que tem uma presença econômica e física grande dentro do Congresso. Mas, no atual governo, há uma resistência: Maia e Alcolumbre tentam resistir a essa enxurrada.

O governo Bolsonaro é parecido com a destruição de uma barragem da Vale. Leva tudo. Mas uma hora essa coisa vai parar.

Agora há uma grande ofensiva. Só nas últimas semanas, podemos citar a Medida Provisória 901, que foi editada para transferir terras da União para Roraima e Amapá e quer autorizar o desmatamento nas propriedades em até 50%, mas o Código Florestal autoriza 20%. Tem a tentativa de liberar as terras indígenas para mineração, a nomeação de um missionário evangélico radical para cuidar dos indígenas isolados, o Conselho da Amazônia.

É um conjunto de ataques. A capacidade do governo Bolsonaro de atacar em todas as frentes ficou demonstrada nesta semana. Mas ele não consegue fazer com que o Congresso leve adiante todas as perversidades que saem dos laboratórios do Planalto. E nossa capacidade de resistência será sempre colocada à prova.

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