"Bolsonaro não tem força para marchar sobre as instituições"
11 de agosto de 2021Vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos (PL-AM) rompeu com o governo e afirma que não dialoga mais com o presidente Jair Bolsonaro. Formado em direito, ele avalia que é o Poder Judiciário que mais tem exercido o mecanismo de pesos e contrapesos para deter os excessos autoritários do presidente da República.
O Congresso, afirmou em entrevista à DW Brasil, deveria ser mais incisivo contra Bolsonaro, mas o deputado diz não ter dúvidas dos compromissos democráticos do presidente da Câmara, seu colega Arthur Lira (PP-AL), com quem aponta ter uma relação transparente.
Ramos presidiu a sessão do Congresso em que foi votada a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e, na mesma ocasião, foi também aprovado o fundo eleitoral com o exorbitante valor de R$ 5,7 bilhões. Com críticas à direita, Bolsonaro foi hostil com Ramos e declarou que o deputado era o culpado pelo fato de os parlamentares não terem discutido mais detalhadamente o valor do fundo. O resultado é que o parlamentar foi perseguido com virulência nas redes sociais por apoiadores de Bolsonaro. Ex-triatleta, Ramos diz que tem energia de sobra para resistir.
"A vontade pessoal do presidente Bolsonaro é marchar sobre as instituições. A dúvida é: quando ele iniciar essa marcha, vai encontrar gente disposta a estender o tapete vermelho ou encontrará gente disposta a se entrincheirar em defesa da democracia e das instituições? Eu estarei na trincheira", avisa.
"O presidente utiliza da retórica para manter mobilizada a turma dele, muito mais do que acreditar que ele tem força para uma saída fora da institucionalidade. Ele não tem."
O deputado concedeu a entrevista a seguir antes de Bolsonaro participar de um desfile com tanques militares pela Esplanada dos Ministérios.
DW Brasil: O sr. foi eleito vice-presidente da Câmara a partir de uma composição com Arthur Lira (PP-AL), que é um dos representantes do Centrão. Como se enxerga nesta representação?
Marcelo Ramos: Quando Arthur Lira me chamou para ser vice e procurou meu partido para compor com ele, ele já era um deputado alinhado ao governo e eu já era um deputado independente. Sou um deputado de centro, não do Centrão. Sou moderado, liberal na economia, com responsabilidade social, ambientalmente responsável e tenho compromisso inafastável com a democracia. Com isso não tergiverso. O Centrão é um agrupamento importante para o país, porque tem dado governabilidade a todos os governos. Mas enquanto não tiver um projeto de país e um projeto de poder, sempre vai receber a pecha de fisiológico. Quem não tem projeto de poder e de país se alia a qualquer projeto, e isso não é bom para a democracia.
Arthur Lira teve aval do Palácio do Planalto e do presidente Jair Bolsonaro. Ao entrar na cúpula da Câmara não significa que o sr. compactua com o governo?
Em momento algum a minha entrada [na chapa] passou por qualquer articulação com o governo. Dos meus votos, 98% foram seguindo orientação do meu partido [PL] e do governo. Tenho identidade com parte majoritária da pauta econômica do governo. Agora, tenho limites. Meu limite é quando o presidente tenta avançar sobre as instituições democráticas. E acho que esse também é o limite do meu partido. Nesse conflito mais acirrado que eu tive com o presidente [Bolsonaro] depois da deslealdade que ele cometeu comigo, em relação à votação do fundo eleitoral, só recebi solidariedade do meu partido.
Sobre essa sua cruzada contra Bolsonaro nas últimas semanas: qual sua opinião política e pessoal sobre o fundo eleitoral [de R$ 5,7 bilhões]?
Acho R$ 5,7 bilhões um exagero para o momento sensível da vida política do país. Naquele dia [da votação do fundo] eu presidi a sessão, trabalhando para a pauta do governo. Segurei a votação por quase uma hora para garantir o alcance do quórum para que a LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] fosse aprovada, o que era de interesse do governo e do país. O presidente cometeu uma deslealdade com o intuito de proteger o filho, que votou por R$ 5,7 bilhões. E o presidente tentou transferir a responsabilidade para mim. O deputado Eduardo Bolsonaro votou, não aguentou a pressão das redes, e foi fazer um vídeo se justificando, tentando dizer que queria votar de um jeito e não votou porque eu não deixei votar. Vamos ver se o presidente vetará mesmo. Estou desconfiado de que ele vai sancionar.
Que tipos de ataques o senhor sofreu da rede bolsonarista?
Aquela fala do presidente [Bolsonaro] não foi só um arroubo, foi pensada e coordenada. Enquanto o presidente dava a declaração [de que o deputado Marcelo Ramos não permitiu a votação separada do fundo eleitoral], as minhas redes sociais recebiam uma avalanche de ataques dessas milícias digitais dele, e o meu telefone pessoal era distribuído no Brasil inteiro. Chegaram a fazer uma arte com a foto da minha família, eu, meus três irmãos e a minha mãe, uma senhora de 71 anos. Atenta contra a minha dignidade relevar isso. Se a tática deles era de me intimidar, deu errado. Não cedo a esse tipo de agressão. Essa turma é muito menor do que eles pensam ser. Como são muito barulhentos e muito mobilizados, parecem mais do que são. Sinto-me cada vez mais forte para resistir a essas ofensivas autoritárias do presidente.
Depois desse episódio, o senhor rompeu com o governo Bolsonaro?
Sim, eu rompi com o governo Bolsonaro. Não significa que vou passar a votar contra pautas com as quais tenho identidade e que acredito que sejam boas para o país. Mas eu não tenho mais diálogo com o governo.
O senhor tem sustentado que haverá eleições em 2022, que o Congresso não vai transigir e vai assegurar a disputa presidencial. Arthur Lira não é tão incisivo. A postura do Congresso, neste momento institucional tão grave, não deveria ser mais incisiva?
Em relação à postura do presidente [da Câmara] Arthur Lira, eu não tenho dúvida nenhuma dos compromissos democráticos dele, de que haverá eleição, de que a eleição será feita da forma que o Congresso decidir, e de que o presidente eleito pela maioria dos votos do povo brasileiro será empossado, independentemente da vontade do atual presidente da República. Agora, não posso exigir dele a mesma postura que a minha. Ele é muito mais alinhado ao governo do que eu. As responsabilidades institucionais dele são muito maiores do que as minhas. Obrigatoriamente, ele deve ser mais prudente do que eu. Eu não o critico.
O Judiciário está endurecendo contra Bolsonaro. Qual sua opinião sobre as ações recentes do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal?
Desde Montesquieu, temos mecanismos de freios e contrapesos. E quando tem no exercício do Executivo alguém com viés autoritário e pouco compromisso com as instituições democráticas, isso tende a se acirrar. O Judiciário está exercendo [o mecanismo de check and balances] melhor do que ninguém ao estabelecer limites ao presidente da República. O Congresso e o STF precisam marcar uma linha aqui no chão da Esplanada [dos Ministérios, em Brasília] para mostrar a partir de onde o presidente não pode avançar.
A vontade pessoal do presidente Bolsonaro é marchar sobre as instituições. A dúvida é: quando ele iniciar essa marcha, vai encontrar gente disposta a estender o tapete vermelho, dar os braços a ele e marchar sobre as instituições e a democracia, ou encontrará gente disposta a se entrincheirar em defesa da democracia e das instituições? No STF eu não tenho dúvida de que ele encontrará homens e mulheres entrincheirados. Aqui no Congresso não sei quantos vão se entrincheirar e quantos darão a mão a ele. Mas seu sei onde eu estarei. Estarei na trincheira.
O presidente deu novas declarações perturbadoras, insinuando que o Judiciário exorbita seus poderes, o que desobrigaria a agir dentro das "quatro linhas Constituição”. Qual sua opinião?
Quem interpreta a Constituição não é o presidente da República, mas o Supremo Tribunal Federal. Então se tem alguém fora da caixinha é o presidente da República. O STF está dentro das suas atribuições constitucionais. O presidente utiliza da retórica para manter mobilizada a turma dele, muito mais do que acreditar que ele tem força para uma saída fora da institucionalidade. Ele não tem. O Brasil, com avanços e recuos, tem uma democracia que se consolida, que já passou por dois impeachments, e tem um presidente sem nenhum compromisso com a democracia. Ainda assim, as instituições se reafirmam. O presidente não está acuado só pelo STF. Ele está acuado por uma rejeição recorde, por uma população que não vai deixar passar 555 mil mortos, 15 milhões de desempregados, 19 milhões de brasileiros com fome, 800 mil empresas fechadas pela pandemia. Em vez de estar preocupado em dar respostas a isso, discute o voto impresso e fala que não vai ter eleição. Não sabe governar.
E como o senhor vê esse debate sobre o voto impresso [a entrevista foi concedida antes de a Câmara rejeitar a PEC do voto impresso]?
No começo eu dizia que era uma solução para um problema que não existe. Agora eu digo que é um problema para uma solução que está posta. Temos eleições com voto eletrônico desde 1996. Já são 13 eleições regulares e não temos nenhum indício minimamente efetivo de fraude no processo eleitoral. Isso é teoria da conspiração, tentativa do presidente de dar uma bandeira mobilizadora para esses amalucados que seguem ele, e objetivamente um retrocesso. Essa turma fala em transparência, em democracia, em melhoramento do sistema eleitoral mas, na verdade, querem criar uma rota de fuga para conturbar as eleições porque estão apavorados e com medo de perder.
O Congresso pode mudar o sistema eleitoral, com o distritão. E votará ainda o Código Eleitoral, com quase mil artigos. Muitos parlamentares não veem transparência nestes debates.
Acho que não vai passar nada, a despeito do esforço do Centrão. Reforma eleitoral cada um tem uma na sua cabeça porque quer construir sob a lógica de como será mais fácil a sua reeleição. Talvez fosse algo para refletir, [haver] uma regra em que o parlamentar não pode legislar para sua própria legislatura. Senão a legislação eleitoral é movida por conveniências. Aqui no Distrito Federal, os oito deputados federais eleitos tiveram apenas 28% dos votos, o que significa que 72% dos eleitores não estariam representados no Parlamento [se a regra atual fosse a proposta pelo distritão, que elege apenas os mais votados]. O distritão vai gerar subrepresentação.
Quais perspectivas o senhor vê para a economia no Brasil?
Até [Friedrich August von] Hayek e [Milton] Friedman abandonaram o que Paulo Guedes defende hoje. O ministro é alguém completamente desconectado da vida real do país. Atua como se fosse um operador de bolsa. Há um debate econômico que precisa vir para o centro: o maior desmonte do parque industrial da história. Guedes tem como pretensão final fazer no Brasil o que fizeram no Chile: matar toda a indústria, virar simplesmente um exportador de commodities e importar tudo o que for industrializado. Isso não tem como dar certo no Brasil. Precisamos repensar a política industrial. O Brasil faz contas burras, tem visão fiscal equivocada. Sem indústria, estamos fadados ao fracasso, à fome, à miséria e aprofundamento do desemprego e da desigualdade.
O senhor rompeu com Bolsonaro. Há possibilidade de apoio a Lula? Como se coloca neste cenário?
O quadro político eleitoral não está conformado. A única coisa que tenho como convicção é que não apoiarei e não votarei em Bolsonaro. Tenho conversado com muita gente, com o governador Eduardo Leite [do PSDB], o presidente Rodrigo Pacheco [presidente do Senado], com Gilberto Kassab [presidente do PSD], no passado dialoguei muito com Luciano Huck. A todos eles digo o seguinte: não basta construir uma candidatura dizendo "eu não sou Lula, eu não sou Bolsonaro". Isso não é suficiente. É preciso expor o que é a economia entre Lula e Bolsonaro, o que é o meio ambiente entre Lula e Bolsonaro, o que são as relações internacionais entre Lula e Bolsonaro. Sem a apresentação de um projeto moderado, liberal, democrático e republicano eu não consigo ver como uma candidatura desse centro democrático vai se consolidar.