"Bolsonaro tenta 'sequestrar' bicentenário da Independência"
6 de setembro de 2022Para a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, o Brasil celebrar os 200 anos da Independência em pleno período eleitoral é uma coincidência "terrível para a República". "Sobretudo sob o mando de um governo retrógrado e pretensamente populista e nacionalista", acrescenta ela, referindo-se ao presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro.
Professora na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade de Princeton, ela acaba de lançar o livro O Sequestro da Independência - Uma história da construção do mito do Sete de Setembro, escrito em parceria com o historiador da arte Carlos Lima Junior e a antropóloga Lúcia Klück Stumpf.
A obra parte da construção imagética acerca do episódio histórico para analisar como a narrativa da Independência foi "sequestrada" ao longo do tempo, privilegiando uma narrativa em detrimento de outras.
"Temos de ler as imagens, não podemos fazer esse uso conservador que aparece nos livros didáticos e nos jornais e revistas agora no bicentenário da Independência", comenta ela à DW. "Temos de despir esse véu da fábula, dos contos, das lendas, e falar de um Brasil que nos represente mais."
Agora, no bicentenário da Independência, Bolsonaro tenta novamente "sequestrar" a data. "Ele vai se vinculando a uma forma e ritual de festejo praticadas durante a ditadura militar, que volta a uma história de um passado no qual o modelo é do protagonista, homem, romântico, que toma sua ações num momento de coragem", diz. "O governo Bolsonaro vai tentar fazer da coincidência de datas uma espécie de premonição a seu favor."
Schwarcz cobra "vigilância cidadã" para que o evento oficial do 7 de Setembro não seja transformado em palanque eleitoral para o atual presidente.
DW: A ideia central de seu livro é o "sequestro" sofrido pela imagem da Independência brasileira. Um governo que posa de nacionalista pode ganhar capital político com o bicentenário, "sequestrando" a história da Independência a menos de um mês das eleições?
Lilia Moritz Schwarcz: É o que o governo Bolsonaro está tentando fazer. De um lado, ele vai se vinculando a uma forma e ritual de festejo praticadas durante a ditadura militar, que volta a uma história de um passado no qual o modelo é do protagonista, homem, romântico, que toma sua ações num momento de coragem. Tudo isso vincula a imagem de Dom Pedro à imagem de Bolsonaro. Não que vincule na realidade, mas é assim que ele procura agir. A coincidência dos 200 anos da Independência com o período das eleições é terrível para a República, sobretudo sob o jugo, sob o mando de um governo retrógrado e pretensamente populista e nacionalista. Ele vai fazer convergir as duas datas. São duas datas capitais numa República: a celebração de sua formação enquanto nação soberana e a o momento quando o povo pratica sua soberania diante da República. O governo Bolsonaro vai tentar fazer da coincidência de datas uma espécie de premonição a seu favor, tanto que já temos o programa de comemorações no Rio de Janeiro, em Copacabana com toda a demonstração de poderio militar em terra, no mar e nos céus.
Como a sociedade deve reagir a isso?
A sociedade brasileira tem maturidade e deve mostrar como a festa da Independência tem de ser uma festa da sociedade civil. Era assim desde o começo da República, com banda, crianças desfilando, balões, piqueniques das famílias nos parques. A sociedade deve retomar, ocupar seu lugar nesse dia de festejos nacionais e festejos da soberania da sociedade civil, ou seja, a Independência não é uma festa militar, tem de ser uma festa civil.
Que outra vigilância tem de ser feita? A sociedade deve mostrar maturidade na condenação do patrimonialismo. Ou seja: se Jair Bolsonaro usar verba pública, que é o que ele pretende fazer, para a elevação de sua própria pessoa no contexto de candidato à reeleição, a sociedade precisa mostrar como essas são práticas criticáveis, não democráticas e não republicanas. E como o patrimonialismo é um imenso mal: tira verba de setores mais do que necessários, como educação, saúde, transporte e segurança e investe essa verba pública para a elevação da figura e do protagonismo de Jair Bolsonaro. É um momento que pede de nós, brasileiros, muita vigilância cidadã.
O quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo (1843-1905), acabou se tornando praticamente a "fotografia" da nossa Independência. Como deve ser apresentada essa obra às gerações atuais, demonstrando sua não veracidade histórica?
O livro [O Sequestro da Independência - Uma história da construção do mito do Sete de Setembro] procura mostrar como a tela, que era objeto de imaginação, seu próprio autor dizia isso – ele usava uma frase incrível: "A realidade inspira, mas não escraviza" –, estava respondendo a uma encomenda do segundo reinado que pedia para que se elevasse a figura de Dom Pedro 1º, que saiu do Brasil em descrédito.
Temos de ler as imagens, não podemos fazer esse uso conservador que aparece nos livros didáticos e nos jornais e revistas agora no bicentenário da Independência. As imagens não são inocentes. Elas produzem significados e realidades, como é o caso da tela do Pedro Américo, que foi imaginada pelo pintor, mas ganhou estatuto de verdade, de etnografia da cena, o que nem seu autor pretendia fazer. É muito importante que as novas gerações aprendam que uma pintura tem contexto, autoria, encomenda, sentido, inspiração e padrões. É dessa maneira que eu imagino que alunos, professores e todos nós devemos ler uma imagem com essa, que já faz parte do imaginário nacional.
Em 1922, por ocasião do primeiro centenário da Independência, o Brasil repatriou os restos mortais de Dom Pedro 2º. Cinquenta anos mais tarde, nos 150 anos, foi a vez de Dom Pedro 1º. Agora, para o bicentenário, houve esse empréstimo do coração do primeiro imperador. Qual a necessidade de trazer elementos assim, arraigados ao monarquismo e, ao mesmo tempo, com características de relíquia que beiram a religião, para celebrações que deveriam ser cívicas, nacionais e, dado o regime atual, republicanas?
A Independência foi celebrada em 1922, 1972 e agora [vem sendo] de uma maneira muito vazia, sobretudo em 1972 e agora, de uma forma muito vinculada a uma celebração patriótica sem conteúdo que desemboque no próprio cidadão e cidadã. Essa forma de cultuar o passado a partir de restos mortais fala de um modelo de história muito nostálgico, saudosista. E de uma história que não aconteceu. Porque é uma história de protagonistas, em geral homens, brancos, de classe alta ou da realeza, que beira as características narrativas das lendas, do universo das fábulas, que sempre falam de reinos distantes povoados por monarcas justos e sobretudo diferentes e diferenciados de sua população, ou seja, que estão acima da população.
Em 1922 foi um pouco diferente porque nos dois grandes museus onde se celebrou o centenário, tanto no Museu Nacional quanto no Museu Paulista [Museu do Ipiranga], os idealizadores procuraram trazer personagens não só da realeza. Por exemplo, o culto a Tiradentes já aparece nos dois museus. No Museu Paulista também aparece Maria Quitéria.
E 2022 se prepara para essa comemoração muito vazia da Independência e que, sobretudo, tira do cidadão a parte da Independência. Eu penso que a Independência tem de ser uma festa cívica no sentido que é uma festa republicana também. Temos que tomar o feriado como um momento para reflexão da população sobre o que se entende por soberania, por liberdade, por emancipação política. Em um país em que a desigualdade é uma imensa realidade e a democracia ainda é para poucos, precisamos fazer da celebração um momento para repensar nossos desafios. E não um retorno à uma história mítica. Temos de despir esse véu da fábula, dos contos, das lendas, e falar de um Brasil que nos represente mais.